quinta-feira, 26 de junho de 2008

O Café na Poesia Brasileira



Café, verso e história


Dalila Teles Veras

Etíope, africano ou árabe, não importa a certeza de sua origem, que, dizem, foi lá pelos idos do Século XII.

Dentre as muitas descobertas de suas propriedades, dizem, destacam-se a de facilitar a digestão, espantar o sono e melhorar o humor. Dão-nos notícias os historiadores de que o café começou a ser torrado e moído e transformado na bebida semelhante à que hoje é consumida, já no século XVI, façanha essa atribuída aos pérsios.

A disseminação de seu consumo foi rápida mas nem sempre tranqüila, graças à sua ação comprovadamente estimulante. Imagine-se que na Itália, onde o produto entrou em 1615 através do porto de Veneza, o hábito de tomar café teve que enfrentar forte resistência da Igreja. Cristãos fanáticos incitaram o Papa Clemente VIII a condenar o consumo da bebida, tida como invenção de Satanás. Na Turquia dos séculos XVI e XVII, quem fosse pego tomando café era condenado à morte.

Consumido a princípio nas casas particulares, na forma de desjejum, o café, por suas propriedades já citadas, transformou-se numa bebida agregadora e passa do consumo caseiro para o consumo em lugares públicos que, acabaram se transformando em pontos de encontro e centros da vida literária, artística e política. O Café passava de bebida a lugar, o lugar do encontro.

Benefícios e malefícios comprovados e desmentidos, o café passou a alimentar o imaginário popular de quase todo o planeta. Da reunião à inspiração, o café passou a ser tema de música, de óperas, de poesia, de ficção literária, de artes plásticas.

O final do Século 17 registra, em Paris, já esse clima dos Cafés, aonde se ia, não apenas para se degustar a bebida, mas sobretudo para encontrar pessoas, conversar e, até, para escrever, pintar, criar em suas mesas, transformadas em mesas de trabalho. Daí em diante, os cafés proliferaram, não só em Paris, mas em toda a Europa. Movimentos artísticos e literários nasceram em Cafés, revoluções políticas idem.

O café, no entanto, levou bastante tempo até chegar ao Brasil, em 1727, na cidade de Belém do Pará. Somente em 1773 chega ao Rio de Janeiro, depois de passar pelo Amazonas, Maranhão e por todo o Nordeste, sem encontrar solo propício à sua cultura. Do Rio, o café expandiu-se rapidamente, e a partir de meados do século XIX tornou-se o nosso principal produto de exportação e a maior fonte de riqueza.

Em 1876 era inaugurado o Café Europeu, o primeiro café da cidade de São Paulo, instalado num ambiente de muito luxo e requinte, na esquina do Beco do Inferno com a Rua da Imperatriz, em pleno coração de São Paulo.

Assim, também no Brasil, a literatura e a política estiveram ligadas aos Cafés. Manifestos, Movimentos de vanguarda, conchavos, polêmicas, saíram em diferentes épocas de Cafés, muito em especial na cidade do Rio de Janeiro, não por acaso, mas justamente por ser esse estado, a Capital brasileira.

O tema do café está presente em vários de nossos símbolos nacionais, como moedas e brasões e em vários aspectos da vida brasileira. O tema também pode ser encontrado na pintura, na música e, em especial, na literatura, quer seja em prosa de ficção quanto em poesia.

Vejamos a presença do tema do café, e a ligação com a nossa história, em alguns trabalhos de nossos melhores poetas:

No poema, O Café dos Emboabas, o poeta mineiro Murilo Mendes, metaforicamente se refere ao ouro negro (o café, dos paulistas) e à gema (as pedras preciosas dos emboabas). Os donos do ouro negro foram, como é sabido, derrotados naquela ocasião:

Os emboabas entraram
Na fazenda dos paulistas
Os paulistas, de sabidos,
Mandam servir o café.

Não é café que eles querem,
Eles querem, mas gemada
Batida com gema de ouro.
Tornaram a pedir gemada,
De novo lhes dão café,
De novo eles recusaram.
Os emboadas se danam,
Puxam o revólver do cinto.
Vão recuando, recuando,
Até nas margens do rio.
O dia inteiro lutaram.
Descansam de noite um pouco,
Pros paulistas vem café,
Os emboabas avançam,
Pedem um pouco de café, Os paulistas recusaram,
Não lhes dão café afora
- Agora é tarde demais -
Os emboabas, furiosos,
Avançam para os paulistas,
Gritam,: “Depois do café
Se costuma beber água”,
Se embolaram com os paulistas,
Atiraram eles no rio,
Lhes dão água pra beber,
Toda vermelha de sangue,
Na cuia do rio das Mortes.

Já o mais paulistano dos poetas, Mário de Andrade, no seu poema Paisagem n°4, fala da importância do Café na vida de São Paulo, no começo do século XX:

“Os caminhões rodando, as carroças rodando,
rápidas as ruas se desenrolando,
rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos...
E o largo coro de ouro das sacas de café!...”

Ainda na efervescente São Paulo de 1928, o poeta Cassiano Ricardo, remete à novidade do café expresso, copiado das capitais européias:

“Café expresso – está escrito na porta.
Entro com muita pressa. Meio tonto,
por haver acordado tão cedo...
E pronto! parece um brinquedo:
cai o café na xícara pra gente
Maquinalmente.
E eu sinto o gosto, o aroma, o sangue quente de S.Paulo
nesta pequena noite líquida e cheirosa
que é a minha xícara de café. (...)”

Logo depois, a crise de 1929 (com a quebra da Bolsa de Nova York), porém, veio a afetar profundamente a cafeicultura, levando muitos fazendeiros à miséria e ao desespero. A revolução de 30 foi o resultado imediato dessa derrocada. A chamada oligarquia cafeeira estava, assim, fora do centro dessa nova ordem, mas o café continuaria a ser uma de nossas marcas fortes.

Dizia o nosso Mário Quintana:

“O café é tão grave, tão exclusivista, tão definitivo
que não admite acompanhamento sólido. Mas eu o driblo,
saboreando, junto com ele, o cheiro das
torradas-na-manteiga que alguém pediu na mesa próxima “

Ainda jovem, no Recife, João Cabral de Melo Neto, fez parte de um círculo animado de intelectuais, que se reunia no Café Lafayette para discutir literatura.

Na obra de Carlos Drummond de Andrade, é possível encontrar vários poemas com a temática do café, como neste poema, no qual o hábito de tomar café é referido:

Infância

Meu pai montava a cavalo, ia para o
campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia
Eu sozinho, menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz
uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala
e nunca
se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

O café como hábito, vício, motivo integrador e, neste caso do poema de Manuel Bandeira, também como onomatopéia que simula o ritmo do trem e resgata trechos de canções populares, que foi posteriormente transformado em canção pelo grande Tom Jobim:

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
(....)

Num outro poema, Bandeira vale-se de um momento acontecido num Café, na elaboração de um poema metafísico sobre a vida e a morte:

Momento Num Café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta

Cora Coralina, a poeta goiana, assim registrou no seu poema Visitas, o hábito de servir café, no começo do séc. XX:

Chegavam visitantes à fazenda.
As notícias... novidades, assunto da terra,
Gados, criação, preços, mercado de Goiás,safra,
roça, paióis, doença.
Corríamos a fazer café, oferta de praxe.
depois, aquelas conversa infindáveis, invariáveis,
coisas da lavoura. Previsão de colheitas, situação das roças,
produção dos engenhos, doenças.
Cobras também eram assunto.

Em épocas bem mais recentes, os poetas continuaram a colocar o café em seus poemas, como neste, de Ana Cristina César:

Quando entre nós só havia uma carta certa a correspondência completa o trem os trilhos a janela aberta uma certa paisagem sem pedras ou sobressaltos meu salto alto em equilíbrio o copo d’água a espera do café

Ou neste outro poema, da mineira Adélia Prado:

Bucólica Nostálgica

Ao entardecer no mato, a casa entre
bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada. Dentro dela, agachados,
na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem
feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
entre enxada e sono: Louvado seja Deus!

Com tudo isso, não é de se admirar que haja um dia dedicado a essa tão amada bebida: 21 de abril, Dia Internacional do Café.

Obs.: roteiro para uma palestra proferida por Dalila Teles Veras a convite do SESC, Unidade de São Caetano do Sul, dentro do Projeto “Estação Café”.


Sobre a autora:

Dalila Teles Veras, natural da Ilha da Madeira, Portugal, residente em Santo André desde 1972. Publicou os livros: Lições de Tempo, Inventário Precoce, Elemento em Fúria, Forasteiros Registros Nordestinos, Madeira: do Vinho à Saudade, A Palavraparte, À Janela dos dias – poesia quase toda, todos de poesia. No gênero crônica, é autora de A Vida Crônica e As Artes do Ofício. Em 2000 publicou Minudências, um diário do ano de 1999. Acaba de publicar Vestígios, poemas, uma plaquete, em edição fora do comércio. Participou de mais de uma dezena de antologias no país e no exterior. Possui trabalhos (artigos, ensaios e textos literários) publicados em jornais e revistas de circulação nacional bem como no exterior. É freqüentemente convidada a proferir palestras em Faculdades e instituições culturais. Atuou como membro de júri em dezenas de concursos literários. Fundadora do Grupo Livrespaço (1982-1993) que manteve intensa atuação na divulgação da poesia, participando de 5 publicações coletivas sob a chancela homônima. Foi co-editora da revista literária – Livrespaço – ganhadora do Prêmio APCA, como melhor publicação de 1993. É editora do jornal literário “Abecês”. Dirige a Alpharrabio Livraria e Editora, com sede em Santo André, e a Alpharrabio Edições. Em 2000 a revista Livre Mercado outorgou-lhe o Prêmio Desempenho de Empreendedora Cultural.
Assinou, de 1995 a 1999, a coluna semanal Viaverbo, no Caderno “Cultura & Lazer” do Diário do Grande ABC. É filiada à União Brasileira de Escritores, entidade onde ocupou os cargos de Secretária Geral, Diretora e membro do Conselho. e-mail: dalilatv@alpharrabio.com.br página pessoal: www.dalila.telesveras.com.br

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