quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Epopéias resgatadas por brasileiros


O livro Avatares da epopéia na poesia brasileira do final do século XX (2009), escrito pelo pernambucano Saulo Neiva, é um salto na direção de resgatar um estilo poético quase em desuso: aEpopéiaEpos, em grego significa recitação, e o gênero epopéia refere-se a uma narrativa em versos longos, eloquentes, solenes, em que o narrador conta os grandes feitos de um indivíduo, ou de um povo, ou mesmo de uma época. As grandes epopéias, as mais conhecidas, eternizaram lendas e mitos, como “Odisséia”, de Homero, ou A Eneida do poeta romano Virgilio, ou mesmo a obra-prima de Dante Alighieri, A Divina Comédia. A temática das epopéias, em geral, é universal e nela se busca a exaltação, a bravura, o humanismo de uma raça ou de uma civilização, expandindo no imaginário do leitor os atos heróicos de um grande personagem ou de uma sociedade, como ocorreu com a mais conhecida das epopéias em língua portuguesa, Os Lusíadas, de Camões.
Saulo Neiva nasceu em Recife, mas foi para a França estudar e pesquisar. É doutor e livre-docente da Universidade de Paris (Sorbonne) e professor da Université Blaise-Pascal, onde dirige a equipe de pesquisa Écritures et Interactions Sociales. Além disso, coordena com Alain Montandon o projeto do “Dictionnaire raisonné de la caducité des genres littéraires” (dicionário da caducidade dos gêneros literários), que brevemente será publicado na Suíça. Em “Avatares da epopéia na poesia brasileira” Neiva estuda o processo de reabilitação da epopéia na poesia brasileira do século XX. O gênero foi considerado por muitos autores do século XIX uma forma poética antiquada, ou ultrapassada, em extinção, visão também partilhada por vários grandes autores dessa época, como Hegel, Edgar Allan Poe, Victor Hugo e José de Alencar.“Com esse trabalho, eu tento mostrar que a poesia épica, que conta grandes histórias ou faz reflexões sobre a humanidade, continua tão viva quanto a poesia lírica”, explica Neiva. Ainda de acordo com o autor, embora a epopéia pareça incompatível com a estética moderna, inúmeros foram os longos poemas narrativos compostos, em diferentes línguas, durante o século XX, sendo que eles possuem “laços estreitos, explícitos e conscientes com a tradição épica ocidental, inclusive na literatura brasileira”.
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Em entrevista a jornalista Geórgia Alves, especialista em literatura brasileira, para o portal literário Interpoética, Neiva explicou porque no livro escolheu se concentrar nas obras de quatro autores brasileiros específicos (Carlos NejarMarcus AcciolyGerardo de Mello Mourão Haroldo de Campos). “Nesse tipo de trabalho, houve vários critérios que se cruzaram para essa escolha. Tanto os limites cronológicos dos poemas estudados, publicados entre 1977 e 2000, como a tentativa de encontrar vozes oriundas de diferentes regiões e aparentemente díspares… Quando relemos as obras deles, na perspectiva da reabilitação da poesia épica, com as ferramentas que tenho tentado forjar, percebemos o quanto, apesar de tantas diferenças, eles se inscrevem na mesma tendência e, principalmente, percebemos que a leitura dos seus poemas ganha muito, quando é feita nessa perspectiva, sem por isso perder de vista o que é específico a cada obra… Outro critério mais subjetivo é, por exemplo, o valor da obra, a de Marcus Accioly, não é reconhecida como deveria, a de Mello Mourão é negligenciada… os laços de Haroldo de Campos com a poesia épica são uma pista que pode ser ainda mais explorada do que foi até agora. No caso de Nejar, acho que o livro “Um país o coração” merece ser relido, por ter momentos extremamente fortes”.
Neiva tem escrito vários artigos e apresentado conferências sobre o tema na França, em Portugal, no Canadá e no Brasil. Quando escreve, trabalha freneticamente, às vezes acordando as 4h30 da manhã para escrever, deixando a escrita invadir e comandar seu cotidiano. Divide sua vida entre a França e o Brasil, mas não descarta viver em outros lugares. Estudioso, disciplinado, atento e fascinado por seu trabalho, Neiva confessa que tem uma gratidão imensa para com o poeta e ensaísta francês Michel de Montaigne(1533 – 1592), com quem aprendeu a ser fiel às suas intuições intelectuais. “Gosto de abri-lo ao acaso, como as pessoas fazem com o I Ching, e relendo um dos Ensaios, sempre encontro motivos para me encantar e rever as coisas do mundo de outro jeito”
Outra obra que pode nos ajudar a entender o desenvolvimento desse gênero na literatura brasileira éHistória da Epopéia Brasileira (2007), de Anazildo Vasconcelos da Silva e Christina Bielinski Ramalho(ambos Mestres e Doutores em Letras), que da mesma forma pretendem, a partir do resgate teórico do gênero, realizar uma (re)leitura dos poemas longos do passado e da atualidade, promovendo uma nova compreensão dessas obras no contexto da produção literária brasileira. Entre outras obras, os autores analisam a estrutura épica de O caçador de esmeraldas de Olavo Bilac. Para Anazildo e Christina, além das motivações particulares de cada um de nós em relação ao gênero, é indispensável no âmbito da historiografia literária brasileira ter um olhar mais especifico para as epopéias brasileiras, de forma a resgatar produções jamais reunidas, tratando-as como um “acervo épico” e uma “contemplação antenada com as marcas do épico em tempos de globalização e fragmentação das identidades culturais”.
Para muitos a epopéia teria sido substituída como forma narrativa pelo romance, sendo que a poesia teria se voltado mais ao acento lírico de formas mais breves, se adequando ao gosto dos leitores “modernos”, que desconfiam dos valores épicos tradicionais. Outros, como Saulo Neiva, estimulam a reabilitação do interesse do leitor pelo gênero, propondo novas “tintas”, novos caminhos, certos de que toda transmissão implica necessariamente em transformação, sendo esta última o caminho inevitável para qualquer forma narrativa. Nas palavras do próprio Neiva: “A epopéia, longe de ser incompatível com a condição moderna, revela-se de fato ser uma reação – muito “moderna”, aliás – de rejeição ao prosaísmo ligado a essa mesma condição”.

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