Faz tempo que não venho até aqui, Poema. Sabe como são as coisas,
como não são. Vim lhe contar um sonho. Ele teve aquele raro (para mim, um
não-profeta) tom augúrico, aquele élan de transcendência.
Um velho bastante enrugado. A materialização em carne do velhote
do desenho animado Coragem, o Cão Covarde
– pois afinal há alguma verdade em Platão. Iniciei, com a onisciência própria
dos sonhos, vendo-o dentro de uma casa trancada, onde tudo jazia quebrado, com
sinais de que assim já estava há tempos. O velho tem a expressão ranzinza até a
medula, mas uma característica o define, resume e adjetiva: seu inviolável mutismo.
Sua palavra recusa-se: ele é aquele que cala.
Me aproximei da casa, que embora trancada, possuía amplas janelas
envidraçadas (a destruição da casa fora causada de dentro; o exterior apenas sofreu a ação do tempo).
Ao perceber minha aproximação, o velho ranzinza e silencioso
imediatamente saiu daquela casa, atravessou a rua e adentrou em outra casa, a
sua própria, onde se trancou em seu quarto. Perguntei à sua senhora, uma velha afável
mas indiferente, e ela disse que ele não iria me receber de maneira alguma. De
onde estava via tudo; você sabe que nos sonhos somos oniscientes deuses, embora
tal poder se apresente embaçado, pois ali somos deuses em infância.
O velho tem algo a dizer, ele é a imensa possibilidade de comunicar
algo, mas recusa-se, e foge furiosamente de mim.
Refletindo hoje, penso que o velho é a encarnação ou figuração do
mais terrível dos versículos: “As coisas encobertas são para o Senhor, nosso Deus; porém as reveladas são para nós e para nossos filhos, para sempre, para cumprirmos todas as palavras desta lei” (Dt
29.29) - o
Incognoscível, o conhecimento velado e impedido que pertence só a Deus. A casa
destruída por dentro é a realidade da Queda, é o mundo onde estou e aquilo que
sou; a casa é o próprio status ‘Queda’. Um furacão destruiu seu interior; o
tempo acabou de debilitá-la. E aqui um insight menor: não é o tempo exatamente
um furacão, mas camuflado numa velocidade hiper slow motion? E não é
significativo que o velho estivesse DENTRO da casa?
O velho é perturbador e angustiante, mas ao mesmo tempo desejável,
pois não causa medo senão estranhamento por sua alteridade, pois ele guarda um
tesouro, ele próprio é o tesouro e seu feroz guardião. Um banco de dados e um
firewall, ambos arquetípicos ou supremos no que são.
Mas de tudo o toque mais augúrico e o insight que deitou tal sonho
a um superior patamar foi o fato de que, no sonho e apenas dentro do sonho, me lembrei de já haver sonhado com aquele velho; o mesmo mutismo furibundo e em fuga, múmia
de dados encriptados (sei que sua aparência é apenas camuflagem e o velho
método espantalho). Ao acordar, soube que nunca sonhara antes com ele; de onde
então, no sonho, a certeza
fotográfica daquela lembrança?
Esse humilde sonho foi um presente de Deus em meu prol; ao ‘materializar-se’,
ao ganhar uma face, de certa forma me aproximei do Incognoscível, me aproximei
daquele que me foge, cujo leitmotiv é fugir-me. O Impossível, ele agora possui
um rosto, ao menos para mim; e dei um
passo para além dos outros homens, ao menos para aqueles seletos e parcos para
quem a existência do Incognoscível é um estorvo: pois eu agora posso
reconhecê-lo na multidão. Ele a própria Incompreensão, eu agora posso vê-lo,
ainda que de um único e turvo ângulo.
Meu Poema, nas filosofias e teologias de oriente e ocidente, Incognoscível quase sempre remete a Deus
ou o princípio criador universal, a quem não se podem engajar atributos – o que
não pode ser visto, medido, conhecido; o que não pode ser descrito. O conceito
que dou à palavra é outro, ou seja, ele é simplesmente o volume ou abismo de
conhecimento que não podemos apreender, seja devido à nossa própria natureza
humana-finita (independente do evento Queda), seja à nossa condição de humanos
caídos. Afinal Deus não é incognoscível, embora absconditus (Is 45.15), embora goste de ‘se
esconder’, dada a separação multiníveis que a Queda interpôs ente Ele e o
homem. Ele é um Deus pessoal, que se (re)revela ao homem caído ao longo da
História, e que ao fim da mesma História, na plenitude dos tempos, revelar-se-á
por completo, e o conheceremos como somos por Ele conhecidos. E conheceremos o
que Ele conhece - e o velho abrirá as portas, e sua alteridade será equalizada,
e ele estenderá a mão (1Co 13).
P.S. – Após escrever o ocorrido no sonho e minhas imediatas impressões,
ocorreu-me outra expansão, menor em poder e clareza, pois como equiparar
reflexão com revelação?:
Você acorda e vê, ao lado de sua cama, um círculo, melhor, um anel
de alguns metros de diâmetro, flutuando diante de si. Nada há dentro dele; é um aro qualquer, um
bambolê. Você entra no anel, mas nunca sai do outro lado. Esse é o
Incognoscível. Ou: uma porta aberta no nada, uma porta diante de você: você
entra por essa porta, você pode ver o outro lado, nada há lá senão a mesma
paisagem em que você se encontra. Mas ao entrar, você nunca sai em lugar algum.
Veja, não é um mergulhar no infinito. É um mergulho em lugar nenhum, é um
devir, um eterno mergulhar e ao mesmo
tempo uma paralisia – um impossibilitar-se
no próprio oceano das possibilidades, um paradoxo como nunca houve nem haverá.
Não há saída do outro lado. Não para mentes como as nossas. O anel que leva
para todas as coisas, onde se entra-para-lugar-algum, eis o Incognoscível.
Sammis Reachers
in O Poema Sem Fim - http://opoemasemfim.blogspot.com.br/
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