quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Uma máscara para o Incognoscível


Faz tempo que não venho até aqui, Poema. Sabe como são as coisas, como não são. Vim lhe contar um sonho. Ele teve aquele raro (para mim, um não-profeta) tom augúrico, aquele élan de transcendência.
Um velho bastante enrugado. A materialização em carne do velhote do desenho animado Coragem, o Cão Covarde – pois afinal há alguma verdade em Platão. Iniciei, com a onisciência própria dos sonhos, vendo-o dentro de uma casa trancada, onde tudo jazia quebrado, com sinais de que assim já estava há tempos. O velho tem a expressão ranzinza até a medula, mas uma característica o define, resume e adjetiva: seu inviolável mutismo. Sua palavra recusa-se: ele é aquele que cala.
Me aproximei da casa, que embora trancada, possuía amplas janelas envidraçadas (a destruição da casa fora causada de dentro; o exterior apenas sofreu a ação do tempo).
Ao perceber minha aproximação, o velho ranzinza e silencioso imediatamente saiu daquela casa, atravessou a rua e adentrou em outra casa, a sua própria, onde se trancou em seu quarto. Perguntei à sua senhora, uma velha afável mas indiferente, e ela disse que ele não iria me receber de maneira alguma. De onde estava via tudo; você sabe que nos sonhos somos oniscientes deuses, embora tal poder se apresente embaçado, pois ali somos deuses em infância.
O velho tem algo a dizer, ele é a imensa possibilidade de comunicar algo, mas recusa-se, e foge furiosamente de mim.
Refletindo hoje, penso que o velho é a encarnação ou figuração do mais terrível dos versículos: “As coisas encobertas são para o Senhor, nosso Deus; porém as reveladas são para nós e para nossos filhos, para sempre, para cumprirmos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29) - o Incognoscível, o conhecimento velado e impedido que pertence só a Deus. A casa destruída por dentro é a realidade da Queda, é o mundo onde estou e aquilo que sou; a casa é o próprio status ‘Queda’. Um furacão destruiu seu interior; o tempo acabou de debilitá-la. E aqui um insight menor: não é o tempo exatamente um furacão, mas camuflado numa velocidade hiper slow motion? E não é significativo que o velho estivesse DENTRO da casa?
O velho é perturbador e angustiante, mas ao mesmo tempo desejável, pois não causa medo senão estranhamento por sua alteridade, pois ele guarda um tesouro, ele próprio é o tesouro e seu feroz guardião. Um banco de dados e um firewall, ambos arquetípicos ou supremos no que são.
Mas de tudo o toque mais augúrico e o insight que deitou tal sonho a um superior patamar foi o fato de que, no sonho e apenas dentro do sonho, me lembrei de já haver sonhado com aquele velho; o mesmo mutismo furibundo e em fuga, múmia de dados encriptados (sei que sua aparência é apenas camuflagem e o velho método espantalho). Ao acordar, soube que nunca sonhara antes com ele; de onde então, no sonho, a certeza fotográfica daquela lembrança?
Esse humilde sonho foi um presente de Deus em meu prol; ao ‘materializar-se’, ao ganhar uma face, de certa forma me aproximei do Incognoscível, me aproximei daquele que me foge, cujo leitmotiv é fugir-me. O Impossível, ele agora possui um rosto, ao menos para mim; e dei um passo para além dos outros homens, ao menos para aqueles seletos e parcos para quem a existência do Incognoscível é um estorvo: pois eu agora posso reconhecê-lo na multidão. Ele a própria Incompreensão, eu agora posso vê-lo, ainda que de um único e turvo ângulo.

Meu Poema, nas filosofias e teologias de oriente e ocidente, Incognoscível quase sempre remete a Deus ou o princípio criador universal, a quem não se podem engajar atributos – o que não pode ser visto, medido, conhecido; o que não pode ser descrito. O conceito que dou à palavra é outro, ou seja, ele é simplesmente o volume ou abismo de conhecimento que não podemos apreender, seja devido à nossa própria natureza humana-finita (independente do evento Queda), seja à nossa condição de humanos caídos. Afinal Deus não é incognoscível, embora absconditus (Is 45.15), embora goste de ‘se esconder’, dada a separação multiníveis que a Queda interpôs ente Ele e o homem. Ele é um Deus pessoal, que se (re)revela ao homem caído ao longo da História, e que ao fim da mesma História, na plenitude dos tempos, revelar-se-á por completo, e o conheceremos como somos por Ele conhecidos. E conheceremos o que Ele conhece - e o velho abrirá as portas, e sua alteridade será equalizada, e ele estenderá a mão (1Co 13).

P.S. – Após escrever o ocorrido no sonho e minhas imediatas impressões, ocorreu-me outra expansão, menor em poder e clareza, pois como equiparar reflexão com revelação?:

Você acorda e vê, ao lado de sua cama, um círculo, melhor, um anel de alguns metros de diâmetro, flutuando diante de si. Nada há dentro dele; é um aro qualquer, um bambolê. Você entra no anel, mas nunca sai do outro lado. Esse é o Incognoscível. Ou: uma porta aberta no nada, uma porta diante de você: você entra por essa porta, você pode ver o outro lado, nada há lá senão a mesma paisagem em que você se encontra. Mas ao entrar, você nunca sai em lugar algum. Veja, não é um mergulhar no infinito. É um mergulho em lugar nenhum, é um devir, um eterno mergulhar e ao mesmo tempo uma paralisia – um impossibilitar-se no próprio oceano das possibilidades, um paradoxo como nunca houve nem haverá. Não há saída do outro lado. Não para mentes como as nossas. O anel que leva para todas as coisas, onde se entra-para-lugar-algum,  eis o Incognoscível.

Sammis Reachers

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