domingo, 7 de fevereiro de 2021

Silêncio Intransitivo (ou o fim da odisseia terrestre), um conto de Sammis Reachers

 


Embora tentássemos, nunca fizemos contato por nossa perícia: em 2039 fomos inadvertidamente visitados por uma comissão composta por cinco raças alienígenas. O espanto foi semelhança do previsto em muitos milhares de livros e filmes. Com o que não contávamos era que chegariam logo cinco espécies juntas – elas compunham, logo esclareceram, uma cordata forma de confederação.

Nos congregamos em assembleias, algumas tecnologias nos foram facultadas – nada disruptivo, nada de melhores tecnologias de voo ou armamento, por exemplo. Derramaram-se em promessas de não-interferência, e foram pródigos na aquisição de muitas de nossas matérias primas – pagas em ouro, dez vezes o valor nominal que possuíam entre nós. Sim, uma lucratividade extrema para os que possuíam o que eles desejavam. Nos perguntamos, claro, por que não nos colonizaram simplesmente. Éramos um mundo arrasado por uma Terceira Guerra Mundial, cujo oxigênio era em parte produzido por máquinas para suprir a demanda da cambaleante vida planetária. Aparentemente, não era de seu interesse, observadores que eram de uma ética a nós sutil, mas profunda, dada a reverência com que a recitavam.

Não muito ousaram nos oferecer. Mas nos deram conta de algo fantástico: eram 39 as raças inteligentes por eles conhecidas. A maioria, pelo apresentado, habitava a esburacada tenda do humanamente imaginável. Mas algumas raças eram extremas em sua singularidade.

Uma raça havia cujos corpos flutuavam entre o tangível e o intangível, de maneira sazonal: era sua forma de adaptação à aproximação maior ou menor de seu planeta natal em relação ao centro de seu sistema solar trinitário, durante o movimento de translação. As radiações e a temperatura, quando da aproximação, tornavam-se poderosíssimas, e tais criaturas simplesmente transitavam para a intangibilidade – tornavam-se algo parecido com fantasmas, embora conservando ainda matéria. Que de alguma maneira se adensava ou re-consolidava, quando seu planeta distava dos três sóis.

Raça outra havia que era o perfeito festim da alteridade radical: em parte como os acima citados, eles possuíam “corpos” tênues, aparentemente gasosos. Mas ao contrário daqueles, não possuíam corpo antropomórfico e nem transitavam entre o tangível e o intangível em sua estranha materialidade. Eram “nuvens vivas”. Quando comprimidos a algumas dezenas ou uma ou duas centenas de metros – pois podiam expandir seus “corpos” por quase um quilômetro – apresentavam aparência de nuvens carregadas de eletricidade, cujo fulgor da galhada de raios ou braços de luz não cessava de brilhar: eram suas redes neuromotoras. Aproximar-se de um deles era impossível: alguma força da Natureza ou de sua negação, supostamente independente da vontade de tais seres e relacionada à própria substância de que eram feitos, repelia-os para certa distância de qualquer forma de vida “material”, como entendemos a matéria. Eram seres de antimatéria? Antes fossem apenas isso; estava circunscrito o mistério. Mas eles as absurdidades de antimatéria suportavam de alguma ignota maneira a matéria, e repeliam apenas matéria “viva” – sequer germes ou bactérias logravam penetrar seu espaço vital. Ou seja, eram seres de “antivida” (o termo original alienígena, como outros, não logrou tradução satisfatória nos vernáculos terrestres). Antimateriais repulsores de vida, de alguma forma (sobre)vivendo na inospitalidade de nossa dimensão material, gerando suspeição sobre o fato de que algum “princípio vital” existia de fato e era mesmo um tipo a mais e acima de força fundamental do universo, prima distante do eletromagnetismo e da força gravitacional, das forças nucleares forte e fraca? Era a impudica teoria de nossos visitantes que, inesperadamente, pouco sabiam para além disso.

Por último, como quem coloca uma cereja ao topo de um bolo, eles alertaram-nos sobre a espécie sua conhecida de características, se não tão dadaístas como as demais, ao menos as mais sombrias. Não, não eram conquistadores, que isso já não havia no cosmos conhecido; nem embaraçosas incógnitas como as tais nuvens vivas de antimatéria/antivida. Mas, se há uma cadeia trófica entre os seres superiores, ou melhor, entre a macrovida cósmica – que segundo nossos visitantes abarcava planetas e seres biologicamente vivos e sencientes do tamanho de nossa Lua – eles seriam os decompositores de tal cadeia alimentar sideral.

Pelas imagens que nos foram exibidas, tais seres mais pareciam bonecos tecidos de terra, grotescos seres de três a três metros e meio, como que esculturas feita de barro, esculturas já desgastadas. Tais criaturas alimentavam-se de planetas. Isso mesmo, suas características biofisiológicas lhes permitiam perceber planetas em vias de extinsão, moribundos ou mesmo já recentemente “mortos” para a vida, e eles ali chegavam em suas bionaves, seus cosmocasulos voadores, e passavam a sorver, sempre em silêncio quase vegetal, algo do planeta – algo sobre o qual nossos visitantes ainda não possuíam consenso formado. As poucas imagens que nos foram compartilhadas eram aterradoras, não por si, mas por revelar a existência daquele tipo de entidades.

Traduzido de maneira mais ou menos literal para as línguas humanas, o nome que aquela coletividade dava a tal espécie astrotófaga era cabal: “Silêncio intransitivo”. Eram pacíficos, pacíficos até a indiferença, e nunca se comunicavam com outras espécies. Não apressavam o fim de um astro: apenas consumiam aqueles irremediavelmente colapsados ou de “morte” ainda recente. Em planetas como os demais de nosso sistema, Marte por exemplo, não tinham interesse – ou estavam mortos há milênios, ou sequer jamais viveram bioticamente. Em um e outro lugar, houve notícia de que tinham sido combatidos, mas o tempo mostrou que resistir era inútil – as frutas que devoravam, já apodrecidas, continuavam sua derrocada inexorável com ou sem a presença e a ação de tais parasitas.

Tais seres eram o ponto extremo da vida, a sua última parada. Possuíam um ciclo vital milenar, e estavam presentes nas cinco galáxias conhecidas pelos confederados. Enviavam emissários solitários pelo cosmo, desbravadores ou zangões a bordo de pequenas e estranhas naves sem modo de propulsão aparente ou conhecido, espécies de casulos que podiam vagar por milênios, sem escala ou “reabastecimento” perceptível, com seu tripulante talvez em modo hibernante.

Junto à informação sobre tais seres, a federação dos cinco acabou nos confirmando algo que já era motivo de discussão desde o nosso século XIX: alguns planetas eram realmente seres “vivos”, e as nossas definições de vida precisavam ser urgentemente atualizadas. A existência de seus devoradores, de uma cadeia alimentar, era a derradeira prova.

 

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Oito, nove anos se passaram. O conhecimento do fantástico e a alegria de não estarmos sozinhos não nos impediram de voltar à carga de uns contra os outros. A confederação não interveio em nossa Quarta Guerra Mundial. Era de sua política, e as viagens até aqui eram custosas e difíceis – até mesmo para eles.

Os rudimentos de tecnologia que pudemos surrupiar dos alienígenas foram à nossa maneira adaptados por cada lado contendor para a criação ou aperfeiçoamento de suas armas.

Se um continente inteiro havia sido aniquilado na Terceira Guerra, agora a própria existência de nossa espécie entrava em risco. Combates movidos à artefatos nuclerares e megapatógenos espalharam o caos sobre o que sobrara de civilização. O silêncio da confederação a todos intrigava, mas não havia o que fazer – um lado haveria de aniquilar o outro.

Foi no terceiro ano de combates que ele chegou. Solitário, pousou na cratera mais profunda do que fora um dia a Europa. Estacionou ali, fixo como um marco, um totem, e permaneceu imóvel. Um dia depois, abriu ou ergueu seis astes que poderíamos atribuir na conta de “braços”. Era, segundo nos ensinaram os confederados, uma forma de comunicação, o envio de um sinal.

Aquele soturno emissário avisava à sua estranha espécie de abutres que havia encontrado alimento. O planeta Terra estava condenado.

Sammis Reachers

 

 

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