terça-feira, 25 de maio de 2021

A fundação do MMA numa comuna gonçalense

 


Fui criado à beira do Rio Alcântara, numa divisa entre os bairros de Tribobó e Arsenal, num trecho do sub-bairro Jardim Nazaré (hodiernamente maledito pelas malas línguas como “Palha Seca”). A este singelo trecho chamávamos, pouco criativamente, de Beira Rio. Nem completava uma favela: Era um rascunho, uma comuna.


Ambiente hostil, eu sem primos ou irmãos que me defendessem, com pai e tios esculpidos na mais pura paz-e-amor que se possa imaginar (e algumas beiçadas na cachaça, mas covardia não, covardia nunca!): Quem de meu pacato sangue me ensinaria o antigo ofício do pugilismo? Isso aí: Ninguém.


Minhas desastradas tentativas de me enturmar, minha desbotada pele branca, somadas a meus acessos aleatórios de fúria (logo mais devidamente apaziguados pelos psicólogos da APAE) redundaram na alcunha de “maluco” e na terapia possível para aqueles doutores de rua: Muita bordoada no lombo de muá, que a palavra acolhimento, se já existia, ainda não havia chegado naquelas paragens...


É, amigo leitor, demorou bastante para que eu aprendesse a devolver com mínima perícia os golpes que levava. Nesse curso fui ajudado por algo em que nosso bairro foi o pioneiro. Sim, se hoje somos o país do MMA, as Mixed Martial Arts (Artes Marciais Mistas), naquela altura ou profundeza da década de oitenta os Gracies talvez ainda nem sonhassem em criar esta modalidade.

E nosso bairro já contava com uma, deixe-me celebrar em maiúsculas, ARENA COMUNITÁRIA DE COMBATES. Mas, como era isso?


Nosso rio Alcântara era fonte do ganha-pão de alguns dos moradores da comunidade. Efetivos ou esporádicos, muitos moradores defendiam seu trocado tirando areia do rio. Sim, sim, não havia IBAMA que os impedisse, e a fonte parecia mesmo inesgotável. Até eu, em infância, certa vez me somei a um mutirão de moleques para tirar areia do rio em troca de... tomar banho numa grande piscina, num casarão onde certo conhecido era caseiro. Sim, sim, também não havia Conselho Tutelar que nos salvasse, e nossos pais de nada sabiam. Era um tempo em que o moleque ia para a rua de manhã, voltava sujo para almoçar, e antes que a mãe desse por ele ou terminasse de desfilar a bronca, o brucutu já se evadia para a rua de novo, vadiando até o anoitecer.


Amigos, ao poder da pá, da enxada e da chibanca, não apenas a areia era o recurso natural explorado pela comunidade. A areola, com sua fina textura marrom, utilizada em emboços, na massa para assentar tijolos e também como terra para plantas, era outro recurso lucrativo, esse escavado dos muitos terrenos baldios.


Acontece que um empreendedor, um inovador desconhecido do bairro, teve a suprema ideia de matar dois coelhos com uma só bordoada. Ou pazada, ou enxadada que seja.


Na margem do rio, em certo ponto, ele começou a escavar areola, que era prontamente vendida. Quanto ao espaço que ficara escavado, um imenso retângulo, ele o usava para jogar a areia que arrancava do rio – o que era facilitado pela diminuição do patamar da margem, já escavada. Assim ele conseguia produzir os dois “gêneros” num mesmo local.


O inusitado foi que, numa feliz ação do destino guerreiro que rege a espécie humana, uma cheia do rio – que sofria cheias regulares – submergiu aquele trecho.


Quando as águas desceram, uma surpresa nos agraciou, presente dos deuses da guerra: Aquele grande “quadrado” escavado às margens do rio fora ocupado completamente por areia – mas não era a areia mais grossa ou cascalhenta que costumava ser tirada do rio para a venda: era uma areia mais fina, como a areia de praia. Aquele vácuo, atingido pela cheia, serviu como uma espécie de baía que, com o fluxo do rio, acumulou apenas a areia mais fina, a que conseguia flutuar em suspensão nas partes mais altas do fluxo de água da enchente. Assim, ao baixarem as águas barrentas, somente a areia fina fora “capturada”.


Aquele lugar era amplo, mas insuficiente para o jogo de futebol, a famosa pelada – e para isso a comunidade já contava com um campinho mais acima, no morro. E as areias eram muitas. Assim, uma solução foi encontrada: O areal passou a ser campo de honra – não, não um cemitério – mas campo onde as honras entravam em disputa. E assim as briguinhas entre as crianças passaram a ser resolvidas ali – do outro lado do rio (na margem contrária donde havia moradias), longe da vista ou ao menos da ação dos pais.


Todo dia tinha pancadaria, não apenas “à vera”, mas “à brinca” também. Um contra um, dois contra dois... Até battle royale (todos contra todos) foi experimentada em nosso caldeirão. César, Septímio Severo, Caracala, qualquer imperador romano exultaria ao ver aquela pequena e mambembe escolinha de gladiadores gonçalense! E, por Deus!, quanta porrada tomei ali!!!


Aquilo se tornara também um campo de sadismo para alguns dos moleques mais velhos, que incorporavam aquele espírito universal, o do sargentão de caserna: Eles estimulavam os combates, impediam a fuga dos desertores e ainda puniam os rebeldes – apanhando-nos pelos membros e balançando-nos como fardos que, após ganhar força cinética, eram lançados de costas – ou como fosse, Deus nos ajudasse – sobre a areia.


Antes do MMA ser criado, antes das artes marciais mistas serem efetivadas no gosto nacional, a Beira Rio já formava – a ferro, fogo e lágrimas empapadas com areia – seus campeões.


* * * * * * *

Capítulo do livrinho de presepadas autobiográficas Renato Cascão & Sammy Maluco – Uma dupla do balacobaco (inédito).
Publicado originalmente no Jornal Daki.


Falando em livros, estão disponíveis (à venda) três dos livros que já escrevi, para aqueles que desejarem prestigiar este escriba gonçalense: Os poéticos Poemas da Guerra de Inverno e Cartas e Retornos, e o livro de crônicas Rodorisos – Histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. Escreva para meu e-mail: sreachers@gmail.com

Um comentário:

Touché disse...

O clube da luta dos periféricos. Uma década antes da tua, ou meia década, por aqui, periferia de Guarulhos,Grande São Paulo, se degladiavam bairro contra bairro. Por sorte,eu tinha amigos fortes, eu também não sabia brigar, meu pai também não. Sempre coisas interessantes no teu blog. Abração,..

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