A Ilha
Depois de apenas três meses esqueci o meu nome. Não me ocorreu escrevê-lo: Estava ocupado, sobrevivendo.
Os anos não podia esquecê-los, pois há comigo um Patek, relógio que roubei sob certo sol, em certo mês de primavera, em alguma cidade do subcontinente que fora um dia chamado América do Sul – e este, sabe-se lá o porquê, é dos poucos dias de que recordo.
Estronda e tomba o tempo,
luz lilás,
obscuro óbito,
carretel de coisículas enrodilhadas em escaravelhos.
estrondestranhoastro brilha e berra no sobrehorizonte
Eu, Gregor Samsa, Heinrich Faust,
Rodion Românovitch Raskólnikov, Leopold Bloom
estelionatário confesso-me:
degredem-me.
Nesta ilha em que me acoitei, amontoei-me de lacunas: Além do comprometimento do sistema respiratório, o vírus tinha um outro efeito, não colateral, mas secundário e utilitariamente sádico: Apagar memórias.
Exempli gratia: Não sei mais como cheguei aqui. Lembro de cenas numa lancha, e isso finda o memorial.
Nesta pequena ilha encontrei uma imensa casa e oito cadáveres espargidos em sua estrutura. A ausência de ferimentos pode indicar que foram mortos pelo vírus. Avento hipóteses; era eu o dono do lugar? Um funcionário? Um amigo, parente do proprietário? Tudo que tenho é o estar-aqui, tudo que sei foi que aqui cheguei.
Na pequena biblioteca, livros em diversas línguas. Na única que conheço ou penso conhecer, uma coleção dita “Clássicos da Literatura”. Suas páginas sedimentaram-se como minhas únicas companhias, aqueles poucos livros em capa vermelha, seus personagens, suas personas. Suas biografias e transenlaces na vida passaram a ser os meus, eu o desmemoriado, eu o de pulmão fulminado por um vírus que não me lembro onde peguei e que deveria ter me matado, mas não matou (sei apenas que uma guerra grande mastigou as coisas humanas, todos contra todos).
Já nascemos com a turbada gravidade
de sobreviventes de um naufrágio
raça desmemoriada
quimiocontrita no corpo de um,
tênue tempestade nas folhas,
vírus multicelular em busca de não sei
Sparrings sem rosto no ringue do Tempo
tentando encaixar um soco
encaixar um soco no Tempo sem rosto
Há algum tempo me ocorrem poemas. Era poeta? Não sei. Mas acredito que não. Tanto que quando escrevo, nem me sinto: É como uma possessão. Será então a poesia, ou a atividade poética, uma demência das faculdades cerebrais?
Lá fora houve uma guerra, uma guerra de finalmente acabar com tudo. Meus frangalhos, a ilha, o lixo feito de destroços que o mar traz, dão conta do que não lembro e no entanto sei que aconteceu.
Lá fora:
Lá na imbricação dos mesmerizados
lá onde o progresso deflorou as virgens esfaimadas
que se lhe apresentaram;
progresso, demônio que aluiu os homens
lá fora
em seus estratos, no que voa no espirro
O barco que me trouxe jaz sem combustível; os geradores à diesel da ilha morrem da mesma sede. As frutas que como, as pequenas aves e répteis, talvez suportem meu pequeno consumo, mas e daí? Eles virão? E quem são eles, e quem sou eu? Como temer um passado que ignoro? O esquecimento, falsa liberdade ou paz provisória, me trai: Lembro ter roubado um relógio. Fui ladrão? Antes ou depois da ruína do mundo, dos mundos? Talvez tenha roubado por fome, talvez por vingança.
Alguém lá no além da ilha, ou no tudo dito além de mim (pois sem um nome, entendi finalmente o estigma que nos conforma, e contra o qual relutamos com a arma que pudemos, adaga cega que resolvemos chamar História: se sou um homem, tudo é além), deflagrou uma guerra universal, e ele talvez ainda esteja lá, e ele talvez ainda me encontre. Ou já me tenha encontrado e esquecido, nesta ilha-mausoléu, neste Alzheimer biodeflagrado por um vírus genocida.
Escrevo palavras na areia, ou poemas, essa forma primitiva de civilização das palavras, e cismo: Talvez não tenha existido uma Segunda Guerra Mundial, ou uma Primeira. Sequer os morticínios, enquanto eventos isolados, de Ruanda ou do Kosovo. Talvez seja tudo uma única e ininterrupta guerra, da morte de Abel ao Armagedon. Sem dias de trégua.
Ilha feridenta,
antologia de chagas
calangos e fragatas desintestinados e assados,
culinária de dramas, axiologia
do que é poético, capuz que ao homem encerra
Ilha tropical e sua mansão deserdada,
nave-desespero em que o Homem
nadaformou a Terra.
Publicado originalmente no Jornal Daki.
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