Ano 2082. A Boate Tanganica fica na cobertura do edifício Von Humboldt, 18° andar. O enclave alemão de Stadt der Sonne, neocolônia de 730 quilômetros situada no coração da Tanzânia, reúne alguns dos mais ricos homens da África.
Johanes Blunt é um deles. Homem de meia idade, bem apessoado, os leves cabelos grisalhos lhe conferiam o charme que, ao lado de seu deus particular, o dinheiro, lhe franqueavam acesso à quase toda mulher que desejasse. Acoitava essa singularidade que o diferenciava entre os seus coetâneos da exótica colônia: Gostava apenas de mulheres.
Afastando-se do salão principal da festa, Johanes ruma à toalete. Ele vai aplicar, na própria veia, uma das poucas drogas proibidas, mesmo na babélica Stadt der Sonne: Nintol. É um estimulante que acelera a atividade de todas as células. Johanes irá aplicar a droga e também irá morrer em seguida, em menos de dois minutos, sozinho no cubículo de um banheiro àquela altura da festa já imundo, tombado sobre uma privada.
Isso, pela cronologia alfa.
Johanes, o grande empresário de soja da África, responsável pelo desmatamento de duas Namíbias inteiras, aplica a nova droga que, misturada à medicação que ele tomara horas atrás, causa uma reação anafilática que o derruba sobre a privada da qual havia acabado de levantar-se. Nesse instante, a cronologia beta se inicia. A portinhola do cubículo é arrancada, e uma injeção contendo contramedidas é enfiada no pescoço do moribundo.
Antes que pudesse recuperar a consciência e entender o que estava acontecendo, braços fortes levantam o corpo esmorecido de Johanes. E algo sinistro ocorre, no exato momento em que o alemão entreabre os olhos: Ele julga ver a ele mesmo sendo jogado de volta sobre a privada. O ele ou outro dele que voa parece um boneco sem vida.
Em seguida, o indivíduo que o apanhara pelos braços toca a outros dois elementos, militarmente paramentados e mascarados, e todos os quatro desaparecem numa espécie de mini-buraco negro que chega a absorver a própria luz do lugar.
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Ano de 2061. Gotardo Mahles foi, há quarenta anos atrás, um ministro de estado, empossado na década de vinte do vigésimo primeiro século, no então continental país conhecido por Brasil. Durante seus pouco mais de dois anos de atuação, ele foi responsável direto e indireto pelo aumento do desmatamento em toda a floresta amazônica. Sob sua tutela e do então presidente da república, Aldir Maldonaro, criminosos brasileiros e de outros países praticaram dezenas de crimes ambientais, crimes que Mahles se esforçou por encobrir, contextualizar, e mesmo descriminalizar, ao fazer lobby por leis mais brandas.
Após sua saída daquele governo, transcorreram ainda quarenta anos antes do ex-ministro morrer, numa queda de avião. Mahles seguiu, até seu fim, praticando crimes outros, ligados à exploração sexual, notadamente para satisfazer às suas muitas luxúrias. Sequer destes deu-se notícia, durante sua vida: O frio Gotardo jamais experimentou o chão de um cárcere. As tentativas de puni-lo criminalmente por suas atividades quando no governo redundaram sempre em nada, até seus crimes prescreverem.
O avião, um Tesla Lightining, aeronave elétrica de 28 lugares, rumava de Caracas para Curitiba, capital do Brasil do Sul. Ao sobrevoar Anápolis, ainda sobre o país de Araguaia, ambos os motores elétricos entraram em pane. O piloto poderia ter acionado as contramedidas de praxe – ejeção da célula de passageiros – mas não o fez. O motivo? Nunca se soube, e já não importa.
Três homens surgem dum pequeno estouro, uma espécie de célula escura que emitiu um som de vento ao eclodir. Imediatamente, um deles ativou um pequeno aparelho de bloqueio de sinais eletromagnéticos, cujo objetivo era impedir que imagens do interior da aeronave fossem transmitidas para fora da mesma, pelo mecanismo de monitoração em tempo real. Apanhando pelo braço ao apavorado Gotardo, com a mesma velocidade com que surgiram, desapareceram. Deixaram caído ao chão um corpo: Um corpo idêntico ao do velho covarde. A ação toda fora percebida por alguns dos passageiros, mas principalmente pela aeromoça que, da porta da cabine, observava o salão do avião, enquanto a nave demonstrava passar por algum problema. Ela se aproximou daquele corpo que fora deixado para trás, e lhe admirou a semelhança com o passageiro que, há segundos, fora pego e levado para dentro de um buraco negro. Seu susto não teve muito tempo para entabular conjecturas, pois o veículo chocou-se contra um edifício, matando tudo e despedaçando a maioria daqueles corpos a bordo.
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Ano de 1859. Austrália, dois séculos antes da ilha se tornar uma neocolônia chinesa, após a Grande Guerra do Pacífico. Thomas Austin, um agricultor, cometeu o mesmo erro que dezenas de seus patrícios, fato que faz da antiga Austrália um dos países mais visitados pelos misteriosos saltadores de buracos-negros. Seu crime foi introduzir uma espécie exótica – no caso, coelhos nativos da Europa – no frágil ecossistema australiano. Os eventos desencadeados a partir desse estopim foram catastróficos, e geraram uma reação em cadeia de sandices, como a introdução dos inimigos europeus dos coelhos, as raposas-vermelhas, na esperança de combater sua reprodução desenfreada. Raposas que, estabelecidas, acharam mais vantajoso caçar os lentos coalas do que coelhos serelepes. E esse foi apenas o princípio das dores.
A porta da choupana em que o moribundo Thomas se encontrava, já prestes a morrer, foi aberta pelos dois agentes, que acreditavam estar diante de um velho canceroso com apenas uma hora de vida. E assim era; mas a reação do velho diabo os surpreendeu. Sem mostrar apavoramento diante daqueles homens imbuídos em estranhíssimas vestes e armas, o australiano apanhou uma velha garrucha de pederneira que jazia numa mesinha ao lado de seu catre e fez fogo contra os agentes, fulminando no peito o primeiro deles. O segundo agente conseguiu recuar, puxando rapidamente seu companheiro pelo braço para fora do pequeno cômodo, praguejando em termos de “maldita Austrália” e “lugar almadiçoado”. Imediatamente iniciou os procedimentos de retorno temporal: Um pequeno buraco-negro, ele sempre, engoliu os dois aventurosos.
Uma nova incursão se fez necessária, ativando uma terceira linha do tempo, a gama, menos por temor do moribundo e sua arma, do que pela necessidade de salvar a vida do agente que fora atingido.
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2109, tempo presente.
Os chamados Comandos Temporais de Ecojustiçamento realizaram, até aqui, 92 viagens.
Na maioria delas, com perfeito sucesso: Apenas a cronologia beta foi ativada. Sim, pois se possível era voltar no tempo, o número de idas a um determinado, específico ponto temporal era limitado. Mesmo sem causar alterações tempo-processuais, que são aquelas acarretadas por intervenções/alterações diretas (como voltar a 1939 e assassinar Hitler), a reles presença ou penetração num mesmo ponto temporal, por mais de três ou quatro vezes, infringia um tipo sinistro de dano à linha do tempo, de consequências assaz desastrosas.
Assim, os gestores das viagens estabeleceram um limite convencionado de no máximo três incursões sobre um mesmo evento ou momento. Somente seria possível, sobre a chamada cronologia alfa ou cronologia base (original) estabelecer uma cronologia beta, gama ou delta, a derradeira.
Das noventa e duas viagens empreendidas pelos cronoagentes, o sucesso foi mais que satisfatório: apenas uma delas chegou a delta, e cinco a gama.
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Vamos agora aclarar os fatos? O objetivo das viagens era, sempre sem alterar a linha temporal, capturar grandes criminosos ambientais no momento exato de suas mortes. Para evitar problemas, seus corpos eram substituídos por réplicas sem vida, clones previamente engendrados: Assim as mudanças nos fatos temporais eram suprimidas ou minimizadas ao máximo possível. Para todos os efeitos, aquele que iria morrer dentro de instantes... morreu, e estava ali seu corpo.
Sua captura tinha um objetivo único: Julgá-los por seus crimes, crimes que afetaram toda a vida planetária. Sua condenação era certa, e sempre a mesma: Seus corpos, agora com sobrevida garantida pela medicina em uso, serviriam como COMBUSTÍVEL VIVO para reatores de energia ôntica – a poderosíssima energia da vida, élan ou força vital que, de reles lenda ou especulação espiritualista, para-filosófica, foi descoberta como uma das forças elementares da natureza, em 2098. Uma vez descoberta, logo se conseguiu utilizar tal força para gerar quantidades milagrosas (não há outra palavra) de energia, mas ao custo de sugá-la de um ser vivo, algo eticamente impensável pela cosmovisão vigente.
Mas, e se fosse possível utilizar as vidas de criminosos – não os poucos e reles criminosos do tempo, mas os maiores dentre os maiores, aqueles responsáveis por danos massivos não apenas à antroposfera, esfera dentre muitas da vida no planeta, mas aqueles que danificaram muitas e muitas (se não todas) as esferas de vida do sistema-Terra?
O programa se iniciou há exatos oito meses, especificamente em agosto de 2108. Fabuloso foi o debate que nele desembocou, como é de se imaginar.
Toda pessoa omniconectada opinou e votou: Deveríamos capturar os que cometeram crimes contra a humanidade, ou apenas os que cometeram crimes contra a base que permite ou não a humanidade subsistir: O planeta Terra? Tais crimes eram mesmo maiores? A era entendeu que sim. Era o zeitgeist, o espírito daquele tempo.
O pragmatismo venceu. Sim, ainda hoje gera embates éticos dignos de uma ágora ateniense. Mas está feito.
A pouquíssima possibilidade de retornar no tempo, e a impossibilidade de mudar suas linhas mestras, tornaram a operação toda direcionada ao que se deu. E aquela civilização pôs-se à caça.
Assim, a lei de Lavoisier e lei maior da matéria, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” era celebrada por aqueles corpos, fadados a consumir-se lentamente, alimentados por equipamentos de biosustentação, doando sua energia mais íntima, mais fundamental – a energia própria da vida – para justamente manter a vida no planeta que tentaram destruir.
Utilizados como tochas humanas. Imóveis. Padecendo de dor, dor considerável, e não por crueldade: Não havia como minorá-la. Sim, uma afronta aos mecanismos vigentes de proteção da vida, aos chamados direitos omnivitais. Ainda assim, a exceção – corporificada naquela pena barbaresca – era aplicada.
Não apenas os altos custos e o altíssimo risco das viagens pelo tempo ditaram a regra para a punição apenas dos criminosos ambientais – que tinham até um apelido, os megadeths. A própria ética da era, amparada numa firme concepção de afirmação da vida, oriunda seja da filosofia secular, seja do neobudismo, seja do cristianismo positivo do (então reabilitado) Albert Schweitzer, deixaram claro o entendimento de que um crime contra a natureza era um crime contra todos, contra todo o conjunto dos terraviventes – dos quais os homens, veja você, são apenas uma das milhões de formas manifestas.
Sammis Reachers
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