O ano
era lá pelos 1999, 2000. Eu era um jovem de pouco mais de 20 anos, que
abandonara há pouco a vivência diária dos fliperamas e trabalhava como cobrador
de ônibus. Nos momentos de folga, curtia muito bem meu PS1 com seus mais de 100
jogos, uma bela coleção naqueles tempos alucinados dos CDs a "3 por 10
reais", que eram comuns nos camelôs. Sim, eu era feliz!
Minha
vidinha ia tranquila até que num belo dia um certo colega, Rodrigo
"Periquito", com quem eu não tinha assim muito contato ou intimidade,
mas pertencente a um "clã" de grandes jogadores/aficionados do
bairro em que eu morava, me aparece no portão. "Ôôôô Saaammmiiis".
Por sorte eu estava em casa, e lá fui atender o rapaz, que era uns três anos
mais jovem do que eu. Estranhei, pois ele estava sozinho e não tinha assim
tanta amizade comigo, tínhamos mais eram amigos em comum.
Após
os cumprimentos de praxe, ele me relatou sua triste história. O garoto, como
disse um dos grandes gamers aficionados do bairro - eu, nessa época
desacelerando, já não chegava à altura deles, mais preocupado que estava com
trabalho, literatura e namoro - comprara, assim que fora lançado, um Dreamcast,
o fabuloso lançamento da Sega que, após o ótimo mas conturbado Saturno, agora
sim vinha com tudo sobre a concorrência. Tornara-se, assim, o primeiríssimo do
bairro a possuir aquela Ferrari das joganças, fato que fizera crescer sua honra
e respeito entre a "nossa" guilda de jogadores. De reles retardatário,
Rodrigo fora alçado ao topo do ranking local, ao lado de Diego, o único
possuidor - em quilômetros - de um Neo Geo AES. O videogame custara uma grana
firme, firmíssima (para você ter uma ideia, corrigindo seu valor da época para
números atuais, o console custava mais de R$ 3.000,00). E Periquito ainda
fizera questão de adquirir a cereja para encimar aquele bolo, o revolucionário
VMU, o memory card com tela LCD e minigames, o que encarecera
as prestações.
Periquito
estava no primeiro emprego - na verdade, o trampo era um tipo de biscate, num
tempo em que não havia o jovem-aprendiz. Após três meses de compra e uso de sua
Lamborghini dos pixels, o rapaz foi repentinamente dispensado do trampo, e
se deu então conta de um detalhe: Como se não bastasse gastar quase todo o
"salário" para pagar as parcelas daquele console comprado
"no susto", no olho-grande ou na emoção, viu logo que não conseguiria
pagar as demais prestações, que ainda eram muitas! Vencido pela febre
consumista, doença silenciosa e a quem a globalização universalizou, faltou
sabedoria ao jovem; sim, sabedoria, “riqueza” que parece fugir da maioria dos
homens. O próprio Jesus, milênios atrás, já ilustrava um de seus ensinos com a
seguinte reflexão: “Pois qual de vós, querendo edificar uma torre, não se
assenta primeiro a fazer as contas dos gastos, para ver se tem com que a
acabar? Para que não aconteça que, depois de haver posto os alicerces e não a
podendo acabar, todos os que a virem comecem a escarnecer dele, dizendo: Este
homem começou a edificar e não pôde acabar” (Lucas 14:28-30). E
agora?
E
aqui, nas elucubrações de Periquito, eu entrava na história, afinal era o único
do grupelho de jogadores a ter um emprego "de verdade", pois os
demais ainda não trabalhavam. Após relatar seu problema, ele me fez uma
proposta - Ele queria que eu lhe desse o meu PS1 e minha coleção de jogos, e
mais um dinheirinho (que ele usaria para saldar ao menos umas duas prestações
das faltantes, para não ficar com o nome sujo no Serasa/SPC), em troca de seu
belíssimo Dreamcast e alguns jogos que ele possuía. Dividido entre a
preocupação de conseguir jogos para o novo console (temor que logo se mostraria
acertado) de um lado, e de outro poder desfrutar daquela maravilha, aquela
Maserati das jogatinas, e ainda ajudar o pobre rapaz, pedi para ele então
trazer a máquina e instalá-la em meu quarto, para um test drive.
Gostei,
meninos, confesso que gostei do que vi: as lendas eram verdadeiras! Negócio
feito, na mesma noite eu embarquei num universo mágico em que, poucas horas
antes, eu sequer sonhara em mergulhar.
Logo
de cara, fui sequestrado pela paixão de Sonic Adventure. Eu, um nintendeiro
clássico, de repente jogava meu primeiro Sonic, e ficava maravilhado no
processo. Outros jogos alucinantes vieram, como Crazy Taxi, Soul Calibur I
& II, MSR, Dead or Alive 2, o injustiçado jogo mix de luta com beat 'em up
da Capcom, Power Stone. Spawn, jogo violento mas absurdamente viciante, me
tomou horas e horas de jogatina, para horror de minha namorada crente (eu, ateu
na época, me converteria pouco depois), assustada com toda aquela, hum,
"carnificina".
O lado
ruim daquele Porsche tunado dos 32 bits era o já relatado: Só após muito
tempo, descobri em um bairro próximo um rapaz, um único, que possuía
um Dreamcast (e pouquíssimos jogos...). E era com ele que eu trocava CDs. Nada
como o PS1, que tinha uns dez, quinze usuários na vizinhança próxima. Até nos
camelôs não era fácil conseguir games para a máquina... Quanto aos jogos
originais, bem, cada um custava algo como um terço de meu salário já inteiramente
comprometido, ou seja: estavam além do meu apertadíssimo orçamento.
O
final de minha história com o Dreamcast foi triste, mas faz parte das lides da
vida adulta. Dois, três anos se passaram, eu me casara e, precisando instalar
com urgência um tanque de roupas em minha casa, e sem ter sequer um
"merréu" ($) sobrando, ouvindo diariamente as cobranças da mulher
(quem nunca?), tive que vender meu bem precioso, minha charanga dos consoles.
Coisas da vida de um adulto pobre!
Se me
arrependo? Uai, e você não se arrependeria?! Dói até hoje... Mas o que importa
é que fui feliz por viver aquele momento, viver aquele
console, e posso dizer que, dos videogames que tive, o Dreamcast foi certamente
o mais charmoso ou especial. Longa vida ao Dream, longa vida ao sonho!
Sammis Reachers
Publicado originalmente na Revista Muito Além dos Videogames #09
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