terça-feira, 22 de agosto de 2023

Galeria dos Gigantes Gonçalenses: Nonato, o sociopata ressocializador

 


Nobilíssimo leitor, em datas pretéritas já apresentamos aqui, em nossa esporádica coluna, o perfil de gonçalenses exóticos, de personalidade, aceitemos, protuberante. Gente sui generis, já quase nem gente, mas mito. Foram tais: Tardonho (o Lesado), Rogier (o Abraão das Potrancas), seu Onório (o viúvo do Bairro Antonina), Everaldo (o paraguaio de Campina Grande), Manolo (o Buda do Boaçu), Banzé (o mascate vingador)...

No entanto, nosso personagem de hoje se destaca dos demais pelo seu perfil ainda mais exótico que o já exótico de nossa fauna citadina.

Nonato foi a nomenclatura com que o batizaram, esse nome com cara de apelido que mais encobre que revela a natureza de nossa personagem.

Se me fosse possível resumir Nonato numa única expressão, classificação ou epíteto, seria a de “sociopata ressocializador”. Sim, o empenho e missão de vida deste nativo do bairro bimunicipal de Várzea das Moças, às suas sinistras maneiras, é, através de prosaicos atos de justiça/justiçamento, cipoadas de baixo impacto, corrigir erros comuns do dia a dia de nossa sociedade, não apenas gonçalense, mas brasileira, quiçá universal.

Conheci Nonato e suas ações enquanto eu trabalhava como rodoviário, cobrador de ônibus na empresa Auto-Lotação Ingá.

Com o tempo, entabulamos uma certa amizade, e passei a manter breves, mas reveladoras conversas com o ferrabrás, quando nos esbarrávamos, em suas idas e vindas a trabalho. Era representante comercial, atuando em toda a região metropolitana de nosso Estado.

Me horrorizaram ao primeiro contato, não sem certo fascínio juvenil, os trejeitos obtusos de Nonato.

E como afinal era a práxis deste pedagogo da ação, deste lobisomem behaviorista? Você, cidadão que faz ou já fez uso de coletivos, deve conhecer (ser?) aquele elemento, inescapavelmente do sexo macho, que se senta nos assentos coletivos de pernas bem, mas bem abertas. Assim, quem senta do lado do corredor precisa ocupar apenas meio banco, já que o espaçoso – muitas vezes nem obeso, nem obrigado pelas leis da física – ocupa UM BANCO E MEIO. Nonato nunca tentou entrar no mérito de os assentos de ônibus, barca, carroça e avião terem sido pensados para indivíduos de até certa altura e peso, regulando por baixo a heterogeneidade que é riqueza social. Sim, um problema patente das economias urbanas a que o capital nos domesticou. Nonato queimava etapas e problematizações e, numa manobra profundamente antipolítica, paria soluções.

Inventor, pois todo revolucionário é fundamentalmente inventor, Nonato elaborou uma calça jeans de marca genérica, na qual, em conluio com uma prendada costureira de seu bairro, afixou nas laterais das pernas, sempre à altura dos joelhos, pequenas tachinhas, pontiagudas e rigidamente fixadas. Bem, você já pode imaginar? Era para mim sempre um espetáculo pedagógico ver Nonato sentar-se ao lado de espaçosos, e “espetar” as cabeludas pernas dos incivilizados. Na maioria das vezes rolava apenas um desconforto, um susto que obrigava o pernudo a, em constrangido silêncio, fechar suas perninhas. Outros mais, reincidindo na espetada, percebiam o engodo, e levantavam-se, esbaforidos. E alguns poucos, valentinos de porta de bar, roncavam confusão, e não uma única vez vi Nonato chegar às vias de fato da incivilidade que combatia, aplicando no valente da vez cipoadas, agora de alto impacto, com um providencial soco inglês, outro de seus “aparatos civilizatórios”. Pare um instante, e tente imaginar tudo isso, rolando de segunda a segunda, nos muitos coletivos que Nonato pegava por dia. Posso prosseguir?

Pois tome mais. Sabe o indivíduo ou a indivídua que gosta de se sentar no assento e colocar sua mochila, bolsa ou trouxa de panos-de-bunda no banco ao lado, interditando a vaga de quem deseja sentar-se, obrigando o cidadão a pedir licença e chamar no simancol ao joão-ou-maria-sem-braço? Amiguinho, você precisava ver! Chego a me excitar ao rememorar: Nosso herói/anti-herói/vilão (a depender de quem é você no jogo social) SENTAVA-SE desabaladamente sobre as bolsas das pessoas, fossem homens, mulheres, adolescentes! Sempre sem pedir licença, sempre veloz para impedir a retirada da trouxa. Só me lembro de vê-lo poupar idosos e infantes. Quanta confusão, quanto arranca-rabo, quanto torneio de xingamentos, quanto “trincou meu Iphone, seu desgraçado” (nessas, em especial, eu quase tinha um orgasmo anticapitalista), mas principalmente: QUANTA LIÇÃO NONATO APLICOU!

O vidigal sem distintivo virou lenda entre motoristas e cobradores. “O cara pegou seu ônibus hoje? Deu ruim? Conta, conta”...

Me lembro de uma vez indagar, encafifado que andava com aquela impiedosa persona:

– Qual é sua filiação ideológica? Você é o quê, cara? Anarquista, fascista, stalinista?

Respondeu de chofre, de trivela:

– Nem sei o que sou. Nem tenho tempo pra isso, rapaz. Sei o que faço: um mundo melhor todo dia. No sapatinho, devagar e sempre. Agora deixa eu procurar um aluno.

E lá ia ele para a frente do coletivo, calmamente observando os bancos à procura de uma vítima. Ou (re)educando.

Porém era isso a poeira, as franjas das ações assanhadiças deste paladino. Desçamos do busão, vamos para as ruas. Sabe os motoqueiros, e aqui entram os de todos os calibres, sejam vadios – como o filho da sua vizinha – ou trabalhadores – como aquele seu genro – que exercitam passar a alta velocidade no cantinho da rua, naquele espaço entre a lombada/quebra-molas/barricada e o meio fio, aquela parte estreita onde a lombada não chega, para poder permitir o escoamento de água?  Fazem isso em sua pressa diária, manobra perigosa, muitas vezes quase acertando o braço de algum pacato transeunte de calçada. Nonato já levou uma bordoada numa dessas e, brasileiro ao contrário, pensou e executou um corretivo: Nosso amargurado dos passadiços prepara saquinhos de areia, em forma de sacolé e, dentro deles, como recheio gourmet, insere mais uma vez suas tachinhas, além de grampos 106/06mm soltos (deu até receita, o bruxo: 4 partes de areia, uma parte de tachas e grampos e meia parte de óleo queimado). Bolsa municiada, o andarilho desova seus sacolés nesses espacinhos entre uma calçada e um quebra-molas, enriquecendo borracheiros e também lanterneiros (pois muitas vezes o apressado, como todo apressado, dá de cara no chão). Quantos motoqueiros, sob a batuta invisível e retificadora de Nonato, aprenderam a passar pela lombada, receosos das surpresas do canto. E quanto, quanto a economia local de vários bairros gonçalenses foi movimentada – borracheiros, oficinas de motos, farmácias – graças à ação anarco-civilizatória deste intimorato gonçalense!

Ainda sobre motoqueiros, vamos ou desçamos aos tiradores de grau (“tirar um grau” é um otário empinar uma moto – ou bicicleta – numa única roda, em via pública). Você já ouviu o “Rugido da Terra”? Ah, meu leitor... O nome, épico, ele roubou de um anime japonês. Sim, o cara de cinquenta e alguns anos à época via animes, “curto desde Patrulha Estelar, cê nem era nascido”. Retomemos: vossa mercê já viu ou, bem melhor, ouviu aqueles sprays sonoros, que possuem na ponta uma corneta, e cujo som imita à perfeição a estridente buzina de um caminhão, carreta, navio que seja? Peça carnavalesca, infernal. Ora pois: Se um tirador de grau resolve praticar seu desofício (ofício de desocupados) próximo a nosso monstro, ele imediatamente apanha seu berrante na bolsa sempre à tiracolo e aplica contra os ares uma cavernosa buzinada. Sim, já jogou muitos ao chão, com o susto – para novamente a riqueza dos lanterneiros e mecânicos. Sim, já rolou confusão, embora ele tenha o tirocínio de tocar a buzina e logo enfiá-la velozmente na bolsa, seguindo em frente com sua cara de paisagem. Uma vez ia morrendo, pois o vida loka da vez era afinal vida loka pleno, e sacou uma pistola em pleno Colubandê, contra a cara de nosso corneteiro. Nonato, matuto, fingiu demência e driblou a indesejada das gentes.

Eu poderia passar oito, quinze colunas, um livro inteiro, relatando os prodígios deste homem de exceção. Mas seu tempo, como o meu, amigo leitor, é curto. Vamos então a apenas mais duas diabruras, um resumo das pataquadas deste varzeamocense, todas peças de ímpar engenho criativo, cujo anelo único é civilizar nossa sociedade barbaresca:

O monstro possui uma página no Instagram apenas para registrar as fotos e dados de motoristas de UBER que cancelam viagens. É isso mesmo que você leu. A cada UBER chamado, o cara dá print na tela com o nome e dados do motorista. “Vai para onde?”, pergunta o uberman. “Bom dia, boa noite, vou para tal lugar”. Em seguida a corrida é eventualmente cancelada; direito do motorista, claro. Alguns abusam deste direito, ok, ok. Alguns esbanjam, emphoderados, este direito. Abusando ou não, cancelou Nonato, vai pra rede. A página já foi derrubada oito vezes, mas o cara é incansável.

Agora a pior traquinada, pra fechar a coluna: Num dia de chuva, marchando em centros de cidades no horário comercial, quanta sombrinhada você costuma levar por dentro das fuças? Golpear os outros com sua sobrinha/guarda-chuva é a maxmaterialização de nossa miséria egótica, contra-empática, a expressão exterior da bolha de egoísmo em que vivemos, alguns vivemos. Pois Nonato, diabo da urbe, criou vingança: O cara adaptou um bastonete com diversas giletes cruzadas, na ponta, afixadas com Durepoxi. Avançando por ruas impraticáveis como as de nosso Alcântara ou a Uruguaiana e vizinhas, na capital, ele posiciona diante do rosto seu aparato. Cada sombrinha que avança em sua direção, cega, doida para lamber sua face e cegar seus olhos, sai chamuscada, talhada, picotada por suas giletes. O lance é rápido e fulminante. E lá se vai a sombrinha, geralmente de mulheres, embora ele não seja misógino (misantropo é certeza). “Num dia forte em Alcântara, foram vinte-e-uma sombrinhas e guarda-chuvas reeducados. Vinte-e-uma!”, narrou-me duma vez, gostoso de si. Canalha!

“Hã!!! Nonato só sacaneia pobre”, dirá você. Ah! Numa futura resenha, talvez narre o outro lado da moeda de fogo desta besta sem cauda, de como ele encontrava meios de punir também os príncipes, e os príncipes principalmente, como deve ser. Mas, enquanto você não vai acreditar no que eu revelar, “olha o papo do maluco”, outros, esses já vitimados, ligarão o fato à pessoa e tenho medo de, revelando o que sei, ser intimado a depor. 

 

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Aberração punitivista, apassivador contundente, formiguinha-cortadeira à serviço do acerto, maníaco obsessivo, psicótico. Sociopata ressocializador. Falangista macedônio, cavaleiro cruzado, lanceiro da nação nagô. Paulo Freire do mundo negativo. O melhor do pior de nós.

 

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Hoje sou um pacato professor de Geografia, militando longe da região metropolitana fluminense, e faz anos não vejo Nonato (terá sido morto por algum outro bicudo? É sempre uma possibilidade, e como que suas ações convergiam mesmo para esse centro equalizador que é a morte). Mas, ao reviver mentalmente tudo isso, desavergonhadamente confesso (afinal um cronista é um confessor concursado) que, se continuo escandalizado, fico igualmente excitado, perturbadoramente excitado com os gatilhos que a saga de Nonato faz disparar em minha cachola. Por isso rogo seu perdão por essa minha torpeza, amigo leitor. Como pesquisador da fauna humana desde meus doze anos, jamais encontrei espécime como este abortivo de Várzea das Moças.

Pra semana, vou finalmente em busca de terapia.

 

Publicado originalmente no Jornal Daki.

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Sammis Reachers é poeta, escritor e editor, autor de dez livros de poesia e três de contos e crônicas, organizador de mais de cinquenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa.

Publicou recentemente seu primeiro romance, o thriller de ação A Ordem Luterana da Cruz Combatente (disponível na Amazon).



Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


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