“Rio, cidade-desespero
A vida é boa mas só vive quem não tem medo
Olho aberto malandragem não tem dó
Rio de Janeiro, cidade hardcore.”
Zerovinteum (Marcelo D2 e BNegão)
Seu
melhor emprego fora no Tijuca Tênis Clube. Era vigilante: bermudão de sarja, um
dogue alemão numa coleira, revólver na outra, a que chamamos de cinto. E paz e
amor naqueles gramados.
Um
incidente lhe arrancou o emprego e a paz: na madrugada sonolenta, terceira
ronda da noite, ele percebeu que a porta de um dos depósitos de material estava
aberta. Entrou, vasculhou. Somente ao sair viu o meliante correndo. Ele não
disparou, não soltou o cachorro que latia de tesão. Nada. “Que fuja, não havia
nada pra roubar aqui.” Mas ele estava no Rio de Janeiro, cidade desespero. Ao
subir no alto muro para concluir sua fuga, fuga quase que “facilitada”, ainda
de cima do muro o desgraçado sacou uma arma e disparou, sabe-se lá pra quê. Ao
primeiro disparo, nosso pacato vigilante, vamos chamá-lo aqui de Alberto pois a
história é verídica e ele vive, abrigou-se atrás de uma árvore. O meliante fez
ainda um segundo disparo. Alberto, mais para afugentar o perigo, disparou seu
primeiro tiro após sair da escolinha de formação de vigilantes.
Na
escuridão inchada pela distância, lhe pareceu que o indivíduo pulara. Resolvido
o problema, Alberto procedeu com os trâmites de praxe. Telefonou para a polícia
e para o gerente da instituição. Em pouco tempo estavam todos lá.
Nas
buscas que a polícia efetuou na parte exterior do clube, uma surpresa: dentro
de uma vala de escoamento pluvial contígua ao muro, com uma única perfuração
central em sua testa, um cadáver.
Ao
relatar que morava em Queimados, na perenemente malfadada Baixada Fluminense,
os policiais vaticinaram: “Matador”. “Deve ter uma ficha grande nas costas,
hein, ceifador?”. “Um balaço no meio da testa, à distância... tu é dos nossos.
Tu é miliciano?”. “O doutor vai correr sua ficha aí, tu deve tá cheio de bronca
nas costas...” “Cê não me engana não, xará, tu é bicho solto...”.
A
situação crescia no insustentável para Alberto, e a própria diretoria do clube
ficara preocupada. E foi a noite e o dia, e a demissão do primeiro emprego. Em
boa hora: ele não queria mais aquela vida.
Poucos
anos depois, a má sorte foi encontrar Alberto estabilizado como funcionário
concursado da companhia de limpeza urbana do município do Rio, a CONLURB. Sua
lotação inicial fora no centro da cidade, mas ficara um pouco longe de sua
residência, agora em Caxias. A transferência que conseguiu foi para a Cidade de
Deus, grande, conflagrada favela, famosa mundialmente pelo filme homônimo.
Trabalhar
dentro de uma favela pode ser bem menos estressante e perigoso do que, à
primeira vista, pode-se julgar. Bem, quase sempre.
Transcorridas
poucas semanas de trabalho na comunidade, Alberto, pacato mas boa praça e
simpático ao extremo, já travara amizade com alguns moradores e também com
diversos de seus companheiros de trabalho. Como varredor de rua, Alberto era
encarregado de certo número de ruas, ou determinada extensão de uma mesma rua,
quando ela era muito grande; e assim era com seus companheiros. Um deles, que
cuidava de área imediatamente contígua ao setor de Alberto, homem tímido e
silencioso, mas simpático, costumava, vez por outra, a desaparecer. Isso mesmo:
Alberto reparara que o indivíduo dito Romário como que abandonava o serviço,
aparecendo mais de hora depois. E o pior: o encarregado, que por pouca coisa
costumava relhar com Alberto e outros trabalhadores, nada dizia sobre aqueles
sumiços. Bem, havia alguma coisa ali. Mas àquela altura Alberto tomara já
algumas vacinas na vida, vida essa que ele aprendera que lhe bastava, sendo
perigoso e desnecessário cuidar das dos outros.
Tempo
que passa, certa vez, num de seus “retornos”, já quase ao fim do expediente,
Romário passou próximo a Alberto, que, ao cumprimentá-lo, notou pequenas
manchas, como salpicos, de sangue nos antebraços de Romário. Calculou, pela
textura e cor, que não era tinta aquilo. Fez um gracejo sobre o Vasco da Gama,
Romário riu e falou algo sobre o tricolor das Laranjeiras, time de predileção
de Alberto, e seguiu para guardar seus materiais.
Uma
semana depois, depararam-se próximo a um grande campo de futebol de várzea na
comunidade, já em tempo do almoço. Sentaram-se juntos sob a sombra de um muro,
destacados de alguns outros garis que também quedavam para o almoço. Entre as
brincadeiras que a crescente familiaridade lhes permitia, Alberto não aguentou
e perguntou:
-
Ô Romário, me diz uma coisa meu amigo. Na boa, sem problema: Já manjei que de
vez em quando você some aí pra dentro da favela, e só volta no fim dos
trabalhos. Fala a verdade: Tu tá pegando alguma mulher aí pra dentro, não tá
não?
-
Que isso tricolor! – disse Romário sorrindo.
-
Tá sim malandro, e o encarregado faz vista grossa. Não tenho nada com isso,
você é parceiro, mas fala pra mim: tá ‘panhando gente hein? Deve ser mais de
uma!!!
Romário,
normalmente quieto, sorria.
-
Vou te falar uma parada Alberto, pois sei que você é fechamento. Então cara, eu
fortaleço os “amigos” aí.
-
Os amigos o quê, a rapaziada do tráfico? Ih caramba! Tu forma na boca e
trabalha na COMLURB ao mesmo tempo? Hahahaha...
-
Não mano, eu não formo na boca não. Vou te falar o que eu faço: eu corto gente.
-
Corta gente??! – murmurou, espantado, Alberto – Como assim, cara? Você? Tá de sacanagem
comigo...
-
Pode crê meu camarada. Corto uns corpos quando tem serviço, e os amigos me
ajudam também com um dinheirinho.
Alberto,
sorrindo frouxo, passou a engolir em seco seu almoço, tentando equacionar a
veracidade ou não da confissão. Romário era tão quieto, e nada tinha de bruto,
era até um pouco franzino. De toda forma, ele já vira a vagabundagem cumprimentando
seu companheiro, e isso explicava também o silêncio cúmplice do encarregado – e
dos demais funcionários, pois muitas vezes as tarefas deixadas em meio por
Romário, durante seus sumiços, eram repassadas aleatoriamente para os outros
garis.
O
resto do almoço transcorreu em silêncio. Alberto na verdade passara a mais
duvidar da história do que a assustar-se com ela. Como afinal aquele moreno,
com uma levada à la Jeca Tatu, cabisbaixo, introvertido, magro, ia praticar uma
barbaridade dessas de picotar cadáveres?
O
tempo, ferida sem remédio, seguiu seu curso. De quando em vez Romário brincava
com Alberto, “olha a machadinha hein””, o que deflagrava sonoras gargalhadas em
nosso amigo, que definitivamente passara a descrer de tudo aquilo.
Num
dia de agosto, pouco depois de retomarem os trabalhos após o almoço, nossos
personagens varriam cada um um dos lados de uma mesma via, quando uma Pajero
que avançava freou bruscamente, atraindo a atenção de todos para os muitos
marginais em seu interior.
-
Qual é Romário! Qual é parça! Bora lá naquela atividade lá!
Ao
convite de um dos meliantes que ocupavam o carro (invariavelmente roubado, um
dentre as dezenas que circulavam na Cidade de Deus), Romário já foi logo
deixando a um canto seu carrinho, pá e vassourão. Mas, enquanto se dirigia para
o veículo, chamou Alberto:
-
Aí Alberto!? Você não queria ver o que eu faço? Vamos lá com os amigos.
Ao
perceber a cara de espanto e incredulidade de Alberto, Romário completou:
-
Bora lá rapá, tá tranquilo, nós é família. Vamos lá.
Pego
de susto, Alberto embarcou na “viatura”. Um misto de terror e excitação o
dominava; assim que entrou no veículo, arrependeu-se, mas era tarde demais. E
dentro dele teimava a ideia de que aquilo tudo era mentira, e que Romário iria
fazer alguma outra coisa, que pior que fosse não envolvia picotar carne humana.
O
veículo andou por algo em torno de um quilômetro, parando em frente a uma casa
de alvenaria, de um só patamar, janelas e porta fechadas.
Ao
entrarem na casa, Alberto teve um acréscimo em seu terror ao perceber que, fora
os sete marginais que vieram no carro, havia mais uns vinte dentro da casa.
Após passar pela cozinha, ele e Romário foram levados ao que parecia ser a sala
da casa.
No
centro do recinto, circundado por grande número de marginais, quase todos
armados, havia um corpo. Mas vivia: um homem com os braços amarrados para trás,
de joelhos no chão, tendo suas duas pernas também amarradas, e um pano enfiado
na boca.
Enquanto
Alberto enregelava-se, um dos meliantes, após cumprimentar respeitosamente
Romário, deu-lhe um tipo de avental de cozinha, duas luvas sujas, dessas de
construção civil, e uma machadinha nova. Alberto galgou o apogeu de muitas fobias,
ao ver Romário vestir-se impassivelmente e, apanhando a machadinha e tocando o
fio com os dedos, para sentir a afiação, abaixar-se ao lado do homem, que
esperneava em desespero.
-
Deitem ele – murmurou, em tom quase inaudível, Romário.
Os
marginais apanharam o pobre coitado e deitaram-no de barriga para cima,
segurando suas pernas e parte superior do tronco. Assumindo agora uma expressão
cuja única palavra precisa ser a demoníaca, Romário pousou uma mão sobre uma
das pernas do homem, e desferiu um golpe na altura do tornozelo, separando do
corpo trêmulo um dos pés descalços. Com mais dois golpes, separou em segundos
mais um côto de perna, agora na altura do meio da canela. O sangue esvaía, o amordaçado
urrava. Marginais xingavam, outros sorriam, outros desviavam os olhos,
incapazes ainda de equalizar terror naquele grau.
Virem,
virem – voltou a murmurar Romário, com expressão de quem tem pressa ou fome.
Ao
virarem a vítima, Romário imediatamente cortou o plástico da algema que lhe
prendia os braços, que dois meliantes imediatamente seguraram, esticando-os.
Romário aplicou rápido golpe num dos pulsos, e logo, quase sentando-se sobre o
corpo em debate, noutro pulso, separando as mãos. Ao levantar-se para ir cortar
o outro pé, por acaso levantou os olhos, que até então não tirara do corpo vivo
à sua frente, como uma criança com seu brinquedo novo, e cruzou os olhos com
Alberto. O Jeca Tatu parecia agora um daqueles incorporados de centro de
macumba. Seus olhos não demonstravam culpa alguma, mas fome; um ríctus de
prazer paralisara seus lábios, um ensaio de sorriso luciferino.
Romário
decepou o último pé, e virou o corpo para cima. Levantou-se, e junto aos
marginais passou a observar o indivíduo – quem seria, o que fizera? – que rugia
em espasmos e sangrava. Após algo em torno de trinta segundos – ou dois
minutos, pois o tempo no cronópio mental de Alberto parara, ou rompera-se –
Romário fez um sinal de cabeça ao que parecia ser o líder dos criminosos, e em
seguida, com uma pressa e perícia de açougueiro, cortou a cabeça do homem,
ainda vivo.
A
cabeça foi colocada numa sacola, e alguém saiu com ela da casa.
Romário
retirou o avental e as luvas, e na pia da cozinha tentou lavar o que podia do
sangue que lhe coloria braços, rosto e botas.
Alberto
tremia, mas tentava manter o controle. Alguns marginais sorriam ao observar sua
expressão; um outro lhe alertou o que, tacitamente, todos favela a dentro
nasciam sabendo: se falar algo, morre.
Após
secar as mãos, o carniceiro dirigiu-se ao líder do grupo, que apanhou um
chumaço de notas de cem e cinquenta, tirou algumas e deu a Romário.
Entraram
no carro, sentados lado a lado. Romário permanecia de cabeça baixa, já sem a
expressão psicótica; era só um homem agora, com seu ar de Jeca. Permaneceram em
silêncio até o ponto de desembarque, no local mesmo onde haviam sido apanhados.
Alberto
nunca tivera coragem para as perguntas – Como, por quê, pra quê, você nunca o
viu, e se fosse inocente, quantos já foram... Foi Romário quem, percebendo a
mudança em Alberto, tentou lhe dirimir o medo, sempre fazendo gracejos.
-
O que você esperava, Alberto? Os “brabos” não têm coragem de fazer, eu faço.
Estão pagando bem, e ainda fico bem na fita. Todo mundo me respeita.
-
Eu sei, eu não duvidava de você não. É que eu achava que no máximo você cortava
gente já morta, defunto – disse Alberto, que desde o evento queimava todas as
potências de sua alma para manter a encenação de que tudo seguia em
normalidade.
Romário,
introvertido e quieto como um matuto, sorriu.
Alberto
esperou um pouco, três meses ao menos, para evitar desconfianças. E, a título
de ter novamente se mudado, dessa vez para Niterói, onde o conheci, pediu e
logrou nova transferência, de volta para o centro da maravilhosa cidade. Cidade
que logo achou por bem deixar no passado, ao pedir exoneração do cargo de gari.
E
foi o dia e a noite de seu segundo emprego.
Sammis Reachers
Obs.: Esta história me foi relatada pelo próprio "Alberto", e ele jurava em favor de sua veracidade.
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