Aprisionados
por esta quieta calamidade, esta crise coronariana que talvez finalmente
inaugure de fato e de direito o século XXI, sobrevivemos com as reservas e
ajudas que podemos. Os que estamos impossibilitados de trabalhar, nadando em
ócio, recorremos a tudo: Overdose de redes sociais, tentativas de exercícios no
quintal ou na área, retorno à espiritualidade, diuturnas D.R.s (discussão das
relações), retomada de leituras que antes se acumulavam, revivals e flashbacks
musicais via Youtube, e a ordem do dia: Sites de streaming como Netflix
e Amazon Prime, ou mesmo os democráticos sites de, hum, não digamos pirataria,
mas facilitação cultural fraternalista.
Mais
um entre tantos sitiados, vez por outra lanço-me em busca de algum filme ou
série, de preferência que me possam instigar. Nessa vibe acabei por ver,
em maratônica sequência, a dois filmes: O laureado sul-coreano Parasita
e o anglo-americano Vestígios do Dia.
Não
tinha a mínima ideia dos roteiros, e foi uma coincidência macabra perceber que
tratam, mesmo que lateralmente, de um mesmo tema: Como os príncipes deste mundo
são detestáveis. E talvez aqueles que os celebram – muitas vezes ao custo de
seu sangue, sua sanidade.
No
ótimo Vestígios do Dia (1993), baseado num romance do nipo-britânico Kazuo
Ishiguro, um abnegado mordomo (o sempre fenomenal Anthony Hopkins) vê a vida e
suas oportunidades de felicidade lhe escorrerem por entre os dedos, sempre
ocupados, sempre asseados, sempre a postos em sua subserviência tão inglesa,
tão torpe. Mas essa torpeza da servilidade, esse assalto e rapto de sua própria
humanidade não é confrontado pelo personagem que, resignado, se anula em seu
papel, como um indiano engessado no sistema de castas, até que seja tarde
demais. Sua bovina suspensão dos julgamentos éticos sobre aquilo que vê e ouve
(“quem é o servo para julgar o seu $enhor?”) dá o tom do absurdo – que pode ser
o de muitos de nós, guardadas as proporções e contextos. Seu sorriso
impassível, mantido até o final não feliz da trama, arranca piedade (e um
difuso sentimento de revolta) de nossos sentidos já anestesiados.
Sem
querer, essa celebração tão inglesa dos de “sangue azul” traz à baila, ao menos
para nós, não-monarquistas, o eterno questionamento: O que leva homens a
servirem a outros que não possuem mérito algum palpável ou mensurável, senão
seu DNA? Um indivíduo é elegido para o poder, outro conquista o poder – mas
como pode alguém HERDAR o poder? Numa tribo zulu na Suazilândia (única
monarquia absoluta do continente africano) ou num café na Piccadilly Circus
em Londres, como abaixar a cabeça a não-escolhidos e não-meritórios, mas
janotas impostos “pelo destino”? E pensar que mesmo hoje há quem fale em
retorno da Monarquia no Brasil. Diabos, não nos bastam os oligarcas e
burgomestres? Esses ao menos não se arrogam ter sangue azul, embora
melindrosamente (e mais para o espelho, mais para si próprios) vistam a
carapuça. Príncipes e rajás: Não em vão o Cristo afirmou que não haverá espaço
nos céus para quase nenhum deles...
Sobre
Parasita (2019), é compreensível que a película de Bong Joon Ho tenha
faturado o Oscar de melhor filme: Se não capturou o zeitgeist, o
espírito do (nosso) tempo de uma maneira plural, capturou ao menos o zeitgeist
do estado da arte e pensamento pós-modernos: Relativização moral seguida do
esforço de re-significação da (de alguma) moralidade, cansaço frente às
estruturas de poder/coesão, celebração não trágica, mas irônica/cínica do
absurdo. Um filme de respeito.
Mas
a quarentena infelizmente é longa. Sitiados em nossos sofás, avancemos na nossa
matinê, imaginando-nos andando livres lá fora, quem sabe nas antigas seções dos
cinemas São José ou Cine Nanci.
Ampliando a mesma linha de questionamentos
éticos de Parasita, funcionando como verdadeiras metralhadoras ou
roletas russas de solicitações, duas produções, uma de 2015 e outra recente,
trazem, igualmente de maneira crua, tal questão.
Em
Circle (EUA, 2015), produção independente e barata, 50 atores despertam
aprisionados num sinistro ambiente, impossibilitados, sob risco de morte, de
saírem de suas posições. Ao centro, uma máquina obscura dispara raios de quando
em quando, fulminando um dos convivas do macabro experimento. Mas eles logo
descobrem que não há aleatoriedade alguma nos disparos: De certa forma, todos
os presentes podem “votar” naquele que irá morrer. O que se segue, embora
recorrendo a alguns clichés, é uma célere catarse de julgamentos éticos,
exposição de preconceitos e exibição do pior que no homem habita. Nauseante,
mas fiel tributário daquilo que a arte deve se propor a ser: Uma perturbação,
ou, parafraseando Kafka (que falava sobre livros), “queremos obras que nos
afetem como um desastre. Uma obra de arte deve ser como um machado diante de um
mar congelado em nós.”
Já
no recente O Poço (2019), suspense/ficção científica espanhol que
alcançou rápido sucesso e gerou até memes (“Mas não é óbvio?”), a mesma fórmula
se apresenta, mas aqui hiper refinada, operando por véus que vão sendo
arrancados – onde loucura se contrapõe à loucura, absurdo (estrutural,
existencial, totalitário) é respondido com absurdo, num jogo de embaçamento,
perda e retomada do sentimento do ético, culminando no esforço final de
redenção/superação sacrificial até o encerramento em aberto, abertura de
possibilidades que igualmente cumpre a função da arte de perturbação dos
sensos.
Se
nossos corpos foram lançados à força em nossas desconfortáveis zonas de
conforto, que a sétima arte possa dela nos arrancar, com seus questionamentos
que, ao exporem nossa miséria, acabam por nos forçar a sermos melhores, a fim
de não perecermos.
Sammis Reachers
Artigo publicado originalmente no Jornal Daki
Um comentário:
Caro amigo: como você bem sabe, através dos fanzines,e outros eventos, tenho uma relação estreita com os artistas, e não consigo explicar,mas sinto a necessidade da arte. Li que "A arte nos dá um entendimento de mundo mais amplo, e ela nos dá subsídios para compreender melhor a vida ". No mesmo artigo,um pouco mais adiante, o articulista diz que "..O artista consegue ver aquilo que as outras pessoas não vêem, e ainda tem a capacidade de nosso cotidiano, de promover uma visão crítica sobre um determinado tema, ou até mesmo propor uma reflexão,". Também vi Os Vestígios do Dia e O Parasita, e concordo com o que você disse sobre os filmes. Abração e paciência !!!
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