Tudo aconteceu em São
Gonçalo.
Dadas
as condições, era o carro ideal. Fernandinho já conhecia de longe. Quatro
portas, motor 2.0, espaçoso, novo e veloz. Pilotara já uns seis, gostava da
pegada.
Um
toque no ombro de Jonas, e um “ali, ali” fizeram o companheiro estacar a
charanga roubada dois quilômetros abaixo. A Cherokee Laredo 2019 deu meio
cavalo de pau, aproveitando-se do sinal que fechara.
Três
das quatro portas se abriram e um trio, logo um quarteto abandonou a Cherokee e
avançou para um Hyundai Creta parado na outra mão.
Do
outro lado da rua deserta, só as lápides do Cemitério São Miguel observavam a
tragédia em vias de tomar seu curso.
DEZ MINUTOS ATRÁS, UM QUILÔMETRO E MEIO ACIMA
Janjão
deu um empurrão no atendente, aproveitando o momento em que os dois clientes
que estavam na loja saíram do estabelecimento. Tinha que ser coisa rápida.
Encostando o gordinho contra a parede, sacou a pistola e a atochou naquela fofa
barriga, ao mesmo tempo em que seu parça Barata, que até ali (des)conversava
com uma outra atendente sobe relógios, desfez o teatrinho chamando a menina
para a realidade, ao lhe apontar o trezoitão cujo cano chegou a tocar o piercing
no nariz da mocinha, metal contra metal naquela joalheria e relojoaria cheia
deles.
Um
terceiro elemento, Pablo, rapidamente abriu sua mochila donde ejetou uma bolsa
para cada atendente, que deveria enchê-la e com gosto.
O
gordinho tremia enquanto estufava a bolsa de prateados, banhados a ouro e
relógios – alguns muito bons, é preciso dizer. Seu temor era que o gerente
voltasse da praça de alimentação, onde fora lanchar. Era homem grosso,
meritocrata com traquejo à capitão do mato, poderia ter alguma reação idiota e
os bandidos poderiam passar fogo em todo mundo.
Barata
apertou com toda força o braço da menina, que estava muito tranquila e devagar
com os trâmites, para o gosto dele. A tinhosinha pareceu entender o recado, mas
olhava bem para a cara de Barata, como se para lhe decorar os traços. Crush do
capitão?
Saíram
andando apressados, depois de trancar o casal no banheirinho da loja. Eram três
bucaneiros; no estacionamento, o quarto homem naquela fornalha gonçalense,
Mateus, aguardava já boladasso. Aquele ganho arriscado era à pedido, era como
uma promessa que devoto paga lá no sertão de onde seus pais vieram: O quarteto
havia perdido dois bicos [fuzis, baby] e uma carga de pó suficiente para
alegrar uma convenção do PSL inteira. Agora era dar conta do prejú.
Saíram
do Partage Shopping cantando pneu, naquele Creta roubado no Porto Novo, três
quilômetros e meio acima do Shopping.
OS MESMOS DEZ MINUTOS ATRÁS, MAS DOIS QUILÔMETROS ABAIXO
Letícia
dera o serviço como sendo molinho, molinho: Seu patrão, o Nicanor Sauerbrown,
iria para casa com a delícia de 100 mil reais, em notas Paulo Guedes, as
providenciais notas lobo guará de 200 pilas, frutos da venda de um
imóvel pago por um policial à vista e em mãos, ou em "moeda corrente
contada e achada certa", como dizem os do doce ofício.
Era
pegar o gente boa, aquele cidadão de bem e contumaz bolinador de empregadas, na
entrada do palacete enquanto o velhote aguardava o portão automático abrir.
O
rolo engrossou já quando Marcelinho e Dedé, que estavam do lado da calçada que
servia de orla à casa do bacana, se aproximaram e deram o tradicional toc-toc
com a coronha da pistola no vidro da porta do motorista. O velho, vendido como
pacato, fez menção de engatar a ré e tentar se arrancar daquele ganho alheio.
Quase deu, mas o bom Nicanor já ganhara muito da vida, e a cafetina, vezes
tarde mas nunca jamais, resolvera variar. Os demais dois aventurosos,
Jonas-o-receoso e Fernandinho-o-frente-ou-cabeça, saíram da outra calçada e
eram agora quatro homens e três armas apontando para o carro.
O
teimão ainda teimou em não abrir a porta, mas Fernandinho não contemporizou e
espatifou o vidro. Abriu a porta, enquanto o velho apertava na mão a bolsa.
Teve de ser arrancado do carro, o homem de milhões que não queria perder
aqueles cem mil. Caído no chão de onde viera, se atracara com a bolsa como um
feixe de costelas que guarda ou encapsula um coração. Foi um tiro no braço que
lhe desfez a valentia ou a devoção à Mamon. Desgraça feita, que Letícia a irmã
de Fernandinho entregara o patrão mas pedira pelo-amor-de-Deus para não
machucarem o bacana.
Entrando
na Cherokee do Nicanor, os vagabundos dedicados àquele rude ofício arrancaram
dali da Trindade em direção à Covanca. Mas o velho decerto ia cantar a pedra: O
mais rápido possível, era preciso se livrar daquele carro.
DE VOLTA AOS DEZ MINUTOS DEPOIS
O
quarteto sartou de banda ganhando chão, indo em direção ao Hyundai, roubado
cinco (faça as contas) quilômetros acima.
Dentro
do carro, foi Janjão quem deu o alarme aos demais, chapados de marijuana, ele
que dizia que maconha era coisa de otário e de cagão, cagão de só conseguir
trampar ou na boca, ou lá embaixo, nos escritórios da vida: Ligadasso no meio
da marola alheia, vociferou, já puxando a peça de polímeros dita Glock:
-
Que po##a é aquela ali, olha os mano aí pesadão, mete bala, mete bala!
Pablo
catucou o entre-os-bancos do carro em busca da PT .40, enquanto
Janjão-o-ligadão já despachava chumbo em rumo dos quatro piratas de chão. A
réplica dos quatro, ou três pois Marcelinho tombara com dois balaços hollow
point no peito, foi diversa. Jonas-o-receoso deu de lombo e correu de volta
para o carro roubado dois quilômetros abaixo; Fernandinho e Dedé, broncudos,
recuaram de peito, metendo bala no Hyundai. Que permaneceu ancorado enquanto a
troca de chumbo – essa democracia de fogo – era exercida, pois o piloto do
Hyundai, Mateus, tomou uma traulitada no peito magro que o atravessou, indo a
cápsula descansar na ferragem do assento desenhado em Seul, feito na Zona
Franca de Manaus e montado em Piracicaba.
Enquanto
Fernandinho e Dedé recuaram atirando para trás da Cherokee, os pipocos, feito
globo-luminária da Pipo’s ou Cash Box, iluminavam & enfumaçavam o dentro do
Hyundai; só Fernandinho conseguiu guarita, que Dedé, com uma medalha na coxa
direita e uma na cabeça, tombou em frente àquele campo santo, CPF cancelado no
campo de honra das intenções frustradas. Destino também de Jonas, 16 anos,
morto pelas costas, morto como tantos logo no primeiro assalto.
No
Hyundai, os três antes-viventes a bordo erraram de não saltar, tomando exemplo
do cabeça Janjão. Pablo e Barata, como Mateus-o-piloto, estavam também baleados.
Arrepiado de ódios, Janjão-o-ligadão tomou tino e saiu detrás da agora peneira
de lata, fazendo fogo contra a cabeça solitária que, detrás da outra peneira de
lata, fazia fogo.
Era
véspera de Dia das Mães, Janjão já vinha do assalto pensando no churrascão que
patrocinaria para a sua e tantas outras mães de sua família de muitas mães e
poucos pais; mas uma coincidência dessas de faroeste caboclo escolheu brilhar
na noite gonçalense, naquele sinal na altura do Cemitério São Miguel, arcanjo
de guerra.
Do
outro lado, foi já com aquela bala de Janjão alojada no lado do peito sem
coração que Fernandinho reconheceu aquela mancha, ou o rosto que a carregava.
O
filme que dizem passar nas mentes moribundas na hora da morte para Fernandinho
resumiu-se ao seu tempo de jogador amador no juvenil do São Gonçalo. Partidas e
treinos em campos de terra e sob sol de Saara – tentativas marteladas, um sonho
levado até onde deu. Com aquele rosto manchado de vitiligo do outro lado da rua
ele jogara, ele rira, ele inteirara o ‘café’ dado ao cobrador de ônibus no dia
em que ambos, 13 e 14 anos e sozinhos, foram tentar a sorte grande numa peneira
lá em São Januário, no Vasco da Gama.
Aquele
do outro lado de sua arma, aquele cuja arma fazia fogo e o matava e aquele a
quem ele matava era Janjão, que Fernandinho conhecera no juvenil do São
Gonçalo, e a quem ele chamara de Romarinho e também de amigo.
Era tarde demais para todos quando a cabeça
que fazia fogo por detrás da Cherokee e o torto valente que tinha orgulho do
ofício de ladrão e dizia que maconha era coisa de otário atingiram-se num
perfeito uníssono, bala na cabeça contra bala na cabeça.
Ali,
defronte ao São Miguel, arcanjo de combate e vencedor de Satanás (Dn 10:13; Ap
12:7-9), o morro da Dita perdeu oito braços, a Covanca outros oito, como se a
cafetina vida ou o acaso, esse (en)carregado de azares, resolvesse botar tudo
pra fora naquele sábado, naquele cruzamento, na véspera do Dia das Mães, no
lombo daqueles moleques desgraçados que sempre tiveram a desgraça por padrasto,
pastor e pasto.
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