Dia desses, dando aula para uma turma de nono ano, afirmei:
“Com o fim da Guerra Fria...”. Somente ao adentrar o aconchego do lar, na
frieza dos raciocínios, dei-me conta da sandice: A Guerra Fria nunca acabou: No
máximo, entrou num hiato. Hoje ela explode em seu “segundo ato”, com seus
oponentes rearranjados no tabuleiro. A assim chamada Guerra ao Terror, que recentemente
envolveu o mundo (de americanos a russos, de sauditas a nigerianos) num combate
a extremistas muçulmanos, agora parece ter sido apenas uma pantomima, uma
diversão apresentada no palco entre uma partida e outra da verdadeira guerra.
Claro está que a Rússia nunca será o que foi a URSS, que
chegou a controlar, de fato ou ao menos no campo ideológico, quase meio mundo
(e quantas, quantas “viúvas” de sua existência deixou!); mas isso não impede o ditador-maquiado-de-democrata
Putin de almejar retomar parte da glória da antiga potência, desejo de glória hoje
reconfigurado numa nova ideologia, na verdade colcha de retalhos que mistura culto
à mítica mãe Rússia com a fé cristã ortodoxa, somado a tantos e embaraçosos
pitacos de fascismo, comunismo e capitalismo oligarca que a situação toda
desconcertou os ideólogos de direita e esquerda pelo orbe à fora. E com
reflexos divertidos no Brasil, rachando esquerda e direita na confusão de a
quem apoiar e pelo quê. Mas deixemos os idiotas de esquerda e direita e
voltemos à guerra ou ao mundo real (com o perdão da redundância).
Hitler utilizou o conceito do lebensraum, o espaço
vital, para justificar sua expansão bélica por sobre territórios e vidas
alheias. O conceito foi elaborado ainda no século XIX, justamente por um
alemão, o geógrafo Friedrich Ratzel. A ideia era que o povo “ariano” precisava
de mais terra para desenvolver seu potencial e isso era um direito “natural”. Esse
tipo de presepada não lhe era exclusividade: Vide o conceito-irmão de “destino
manifesto”, preconizado do outro lado do Atlântico por ideólogos dos EUA, e que
segue a mesma ladainha suprematista – mas essa polêmica, deixo para outro
artigo. Putin utiliza, um pouco travestido, o mesmíssimo argumento: Invade ou
subleva ex-membros da URSS para salvaguardar população de origem ou etnia-cultura
russa presente em tais países. Pois temos um baita problema aqui: Há tais tipos
de pessoas (russos étnicos) EM TODAS as ex-repúblicas soviéticas! Era uma norma
da URSS fazer esse transplante de populações, de etnias, entre suas repúblicas,
no objetivo de promover a integração e ajudar a debelar eventuais movimentos
separatistas (essas transposições, de si só, causaram mais mortes que muitas e
muitas guerras).
Sim, a URSS ruiu duma vez para sempre, mas a m#rd@ está
feita, e acredite neste professorzinho aqui: Ainda terá outras e bélicas
repercussões, nos próximos anos. Pois Putin, caso não caia ao fim deste
capítulo ucraniano, certamente há de, agora ferido ao extremo pelos embargos,
“meter o pé na jaca” ou na porta alheia, e aproveitar para aumentar sua
presença em ou influência sobre tais repúblicas, notadamente as não abrigadas
sob o guarda-chuva da OTAN. Cada ex-república soviética, seja hostil, “neutra”
(isso ecxiste???) ou ALIADA, sente o peso do urso e rumina o risco, dia após
dia.
Poslúdio: Enquanto isso a China, embebida na sapiência
pragmática de Confúcio e Sun-Tzu, segue o que eu chamaria cariocamente de o
caminho do bom malandro, e observa seus adversários ou aliados de ocasião (não
se engane, a China sempre viu e verá a URSS/Rússia desta forma) se digladiando.
Ela ocupa espaços no tabuleiro, engorda seu gado, ara seu campo – até que se
apresente o momento (10, 15, 25 anos?) de ditar o capítulo final (Terceiro
Ato?) da Guerra Fria.
Publicado originalmente no Jornal Daki em 05/03/2022
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