Foi
no cemitério São Miguel, central em São Gonçalo, lar derradeiro de muitos de
nossos amigos e parentes, quiçá um dia o seu, amigo leitor.
O
ano era o dois mil e alguma coisinha. O da vez – não o defunto, mas o, digamos,
“animador de velório” – um tal Banzé, antigo vendedor de roupas e miudezas, o
conhecido e ainda não anacrônico mascate. Com o tempo fizera também as vezes de
agiota, atividade margeadora da lei, mas muito bem quista pelos apertados da
vez. Chegou para a despedida final de Totonho, mestre da sanfona e estimado
dono de birosca, fulminado dia antes pela dengue hemorrágica.
Um
abraço na viúva, aquel’olhadela regulamentar nas fuças do defunto, um aperto de
mão neste e naqueloutro conhecido... Foi quando Banzé ouviu, em certa rodinha
formada entre os enlutados, um cidadão que falava em tom sorrateiro:
– E a dívida
é essa, minha gente. Nosso amigo – meu melhor amigo!!! –partiu e nem pras despesas
do enterro deixou migalha. Era alma santa, sempre ajudando a todos, tocando seu
forrozeiro, sua sanfonagem, de graça, vendendo pinga no fiado... Por isso eu
peço a cada um de vocês essa pequenina contribuição para custear a despedida de
nosso amigo, do nosso eterno Totonho.
Banzé
apertou os olhos e mordeu os lábios, balançando a cabeça para ver se a cansada
maquinaria espoucava. Será? O coração pulsou mais forte, mais ruim, Banzé
nem chegou na rodinha e já foi chamando:
– Doutor Gilson??? Doutor Gilson??!!
Mas
vamos a uma paradinha, amigo leitor, para dar vez ao clássico recurso narrativo
dito flashback:
*******
O
rolo teve parto lá no antigamente, nas bordas da hoje Favela da Linha, no
bairro gonçalense de Rio do Ouro: Banzé, egresso de última leva do sertão
nordestino, havia iniciado há pouco na atividade de mascate, e puxava seu
burinho-sem-rabo lotado de roupas, panelas e redes.
A
década era magra, quase perdida, e as vendas iam de mal a mais mal ainda. Aparando
o sol com um boné surrado de campanha política (Moreira Franco Governador ‘86),
mastigando poeira com as canelas finas por rua deserta, de poucas e incipientes
construções, um berro do portão de um sobrado fez o mascate estacar. Era um possível
cliente, chamando o vendedor. A área era ainda mais posse do mato do que de
gente, e aquela casa, cuja construção aparentava ainda não estar finalizada, pareceu
aos olhos do sertanejo um pequeno palácio de subúrbio. Mascate Banzé encontrou ali
a realização, pois o dono do casarão, homem de seus quarenta anos, que se dizia
engenheiro da Petrobrás de nome “Doutor Gilson”, comprou de cada item uns três
exemplares, que eram para ele, para a casa de sua mãe, e também para certa
teúda que o tal, “homem casado e respeitador”, sussurrou manter lá pros lados
do Meia Noite, em profundezas de Santa Isabel.
O
sistema desses mascates, amigo leitor, deve ser seu conhecido, pois ainda hoje
seguem o mesmo modus operandi: A mercadoria ficava no fiado, e uma
caderneta humilde ia recebendo as marcações a cada pagamento, que podia ser
semanal, quinzenal ou por mês.
Foi
com a carrocinha – da qual fazia as vezes de cavalo ou burro –
esvaziada
que Banzé chegou na base, sorrindo de orelhão a orelhão. Na central de
distribuição foi grande a surpresa do chefe, Paulete, que agenciava mais de
trinta vendedores e logo celebrou Banzé como exemplo e funcionário do mês.
E
veio o fim do mês. Banzé chama no portão do casarão. Era tempo de recolher a
primeira parcela. Chama que chama e eis que uma bela senhora ou senhorita
assoma ao portão.
–
Pois não?
Era
o vendedor, que vinha cobrar do senhor marido da senhorinha, “o Doutor Gilson”,
a parcela das vendas.
Marido
ela não tinha, nem Gilson algum conhecia. E homem na casa era só seu pai,
setenta e tantos anos na cangalha. E o homem que comprara as mercadorias? Bem,
realmente não havia ninguém com aquelas características no palacete. Confusão
armada, Banzé esperneando até que o velhote deu as caras. Ouvida a história, o ancião
alisou a careca pra cá, alisou a careca pra lá e bateu o martelo:
–
Olha rapaz... Eu sinto muito em lhe dizer o que vou lhe dizer... Pelo jeito,
esse cidadão que lhe comprou as mercadorias foi um tal de Sebastião, que estava
trabalhando aqui como pintor. Digo Sebastião pois foi o nome que ele me
apresentou. O sacana, depois de pegar a primeira parcela do pagamento, sumiu. E
aqui da casa, que estava ainda vazia, ele levou os materiais de pintura que eu
havia comprado, além de ferramentas e uma bomba d’água.
Meu
sobrinho que é policial soube dele, pela descrição e modo de proceder, em outra
freguesia, lá pelos lados do Saco de São Francisco, em Niterói; mas lá ele
dizia chamar-se “Senhor Atílio, fiscal de posturas da prefeitura”. E tem mais:
O mesmo elemento parece ter aplicado golpe em alguns políticos, se dizendo
jornalista do Jornal O Fluminense e prometendo escrever matérias favoráveis,
mediante módico pagamento. Nesta aventura o nome que ele utilizava era Abel
alguma coisa. Assim, lamento lhe informar que o tal Sebastião ou Atílio ou Abel
ou o diabo que o parta, o mesmo que me sacaneou, infelizmente sacaneou também o
senhor, e utilizando a minha casa...
História
triste desembalada, era Banzé comer o pedaço que conseguisse digerir e rumar de
volta pra central, onde o chapéu de otário, feito de couro nobre da terrinha, além
da dívida cabulosa, o aguardavam.
Foram
meses trabalhando “de graça”, remoendo poeira e ódio, passando fome como na
terrinha da qual se surrupiara.
*******
–
Doutor Gilson!, continuou a gritar Banzé, recuperando um nome de duas décadas
atrás. O ouvinte, fosse Gilson ou não, ou não ouviu ou se fez de rogado.
–
Senhor Atílio, o fiscal da prefeitura de Niterói, é o senhor??? – berrou mais
forte Banzé, mudando a nomenclatura e já abrindo caminho por dentre a pequena
turba que sacava pingados e requenguelos para a inteira do enterro.
–
Está falando comigo, cidadão?
–
Oxi! Pois tô!, ô se tô!!! Não se lembra de mim, “doutor”?
–
Não, não me lembro, e nem sou doutor, nem fiscal. Por acaso, meu nome é Hélio,
e sou líder comunitário lá no Salgueiro. Conhece o Salgueirão?? – disse o
arrecadador de inteira pra enterro, agora com o semblante algo acuado ao ouvir
um segundo nome, e tentando já assustar o inoportuno pregoeiro.
–
Pois me deixe lhe avivar a memória, Abel. Tenho uma boa notícia pro senhor.
A
primeira tapanca estrondou nas fuças do envelhecido engenheiro da Petrobrás,
logo seguida de um cortejo doutras bordoadas, curtidas por duas décadas de
atraso e sol quente. A sessão de descarrego teve o inusitado de, a cada pancada
desferida, o vingador Banzé endereçá-la verbalmente a uma das personas ou almas
que habitavam aquela carcaça tinhosa: Um soco de esquerda pegando pela lateral
desguarnecida do queixo foi nomeada dum “segura, Abel”, enquanto outro murro,
um potente e estranho direito desferido de cima para baixo escorreu magoando a
cara dum “toma essa, Hélio”, que cambaleou e foi ungido com um chute acima do
umbigo, desta vez encomenda para um certo “Gilson, seu filho-da-#&$@”. O
engenheiro ou pintor ou fiscal de posturas ou jornalista ou líder comunitário mal teve
tempo de acessar aquela de suas personas que fosse a mais valente, pois o
conjunto dos tantos-em-um se esborrachou no chão, sendo amaciado a chutes e
pontapés.
–
171, safado, filho duma quenga! Passei muita fome por tua causa, desgraça! –
gritava o transtornado nêmesis exorcista, vermelho feito pimenta.
E
choviam sopapos nomeados, uma tempestade deles, enquanto convivas se evadiam
num desespero tal que até o pobre defunto – sacrilégio! – foi derrubado de seu
ataúde, enquanto mulheres e crianças expandiam um berreiro de acordar alma
penada, num fuzuê que o campo santo jamais vira.
*******
Na
delegacia, levantou-se a planta daninha do pilantra. Nascido em Goiás, onde
iniciara a carreira roubando gado, lá curtira breve cadeia, donde fugira justamente
para o leste fluminense. Terra de pretensa malandragem, mas onde ele, cujo nome
verdadeiro (?) era Cassiodoro Lopes Caiado, encontrara sempre desprevenida
& farta manada de otários. Quem diria que, em terras fluminenses, seria um
cearense da mulesta quem iria dar freio naquela carreira artística...
Sammis Reachers
Publicado originalmente no Jornal Daki
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