terça-feira, 12 de abril de 2022

O salseiro no cemitério São Miguel (conto)

 


Foi no cemitério São Miguel, central em São Gonçalo, lar derradeiro de muitos de nossos amigos e parentes, quiçá um dia o seu, amigo leitor.

O ano era o dois mil e alguma coisinha. O da vez – não o defunto, mas o, digamos, “animador de velório” – um tal Banzé, antigo vendedor de roupas e miudezas, o conhecido e ainda não anacrônico mascate. Com o tempo fizera também as vezes de agiota, atividade margeadora da lei, mas muito bem quista pelos apertados da vez. Chegou para a despedida final de Totonho, mestre da sanfona e estimado dono de birosca, fulminado dia antes pela dengue hemorrágica.

Um abraço na viúva, aquel’olhadela regulamentar nas fuças do defunto, um aperto de mão neste e naqueloutro conhecido... Foi quando Banzé ouviu, em certa rodinha formada entre os enlutados, um cidadão que falava em tom sorrateiro:

E a dívida é essa, minha gente. Nosso amigo – meu melhor amigo!!! –partiu e nem pras despesas do enterro deixou migalha. Era alma santa, sempre ajudando a todos, tocando seu forrozeiro, sua sanfonagem, de graça, vendendo pinga no fiado... Por isso eu peço a cada um de vocês essa pequenina contribuição para custear a despedida de nosso amigo, do nosso eterno Totonho.

Banzé apertou os olhos e mordeu os lábios, balançando a cabeça para ver se a cansada maquinaria espoucava. Será? O coração pulsou mais forte, mais ruim, Banzé nem chegou na rodinha e já foi chamando:

 – Doutor Gilson??? Doutor Gilson??!!

 

Mas vamos a uma paradinha, amigo leitor, para dar vez ao clássico recurso narrativo dito flashback:

 

*******

 

O rolo teve parto lá no antigamente, nas bordas da hoje Favela da Linha, no bairro gonçalense de Rio do Ouro: Banzé, egresso de última leva do sertão nordestino, havia iniciado há pouco na atividade de mascate, e puxava seu burinho-sem-rabo lotado de roupas, panelas e redes.

A década era magra, quase perdida, e as vendas iam de mal a mais mal ainda. Aparando o sol com um boné surrado de campanha política (Moreira Franco Governador ‘86), mastigando poeira com as canelas finas por rua deserta, de poucas e incipientes construções, um berro do portão de um sobrado fez o mascate estacar. Era um possível cliente, chamando o vendedor. A área era ainda mais posse do mato do que de gente, e aquela casa, cuja construção aparentava ainda não estar finalizada, pareceu aos olhos do sertanejo um pequeno palácio de subúrbio. Mascate Banzé encontrou ali a realização, pois o dono do casarão, homem de seus quarenta anos, que se dizia engenheiro da Petrobrás de nome “Doutor Gilson”, comprou de cada item uns três exemplares, que eram para ele, para a casa de sua mãe, e também para certa teúda que o tal, “homem casado e respeitador”, sussurrou manter lá pros lados do Meia Noite, em profundezas de Santa Isabel.

O sistema desses mascates, amigo leitor, deve ser seu conhecido, pois ainda hoje seguem o mesmo modus operandi: A mercadoria ficava no fiado, e uma caderneta humilde ia recebendo as marcações a cada pagamento, que podia ser semanal, quinzenal ou por mês.

Foi com a carrocinha – da qual fazia as vezes de cavalo ou burro –

esvaziada que Banzé chegou na base, sorrindo de orelhão a orelhão. Na central de distribuição foi grande a surpresa do chefe, Paulete, que agenciava mais de trinta vendedores e logo celebrou Banzé como exemplo e funcionário do mês.

E veio o fim do mês. Banzé chama no portão do casarão. Era tempo de recolher a primeira parcela. Chama que chama e eis que uma bela senhora ou senhorita assoma ao portão.

– Pois não?

Era o vendedor, que vinha cobrar do senhor marido da senhorinha, “o Doutor Gilson”, a parcela das vendas.

Marido ela não tinha, nem Gilson algum conhecia. E homem na casa era só seu pai, setenta e tantos anos na cangalha. E o homem que comprara as mercadorias? Bem, realmente não havia ninguém com aquelas características no palacete. Confusão armada, Banzé esperneando até que o velhote deu as caras. Ouvida a história, o ancião alisou a careca pra cá, alisou a careca pra lá e bateu o martelo:

– Olha rapaz... Eu sinto muito em lhe dizer o que vou lhe dizer... Pelo jeito, esse cidadão que lhe comprou as mercadorias foi um tal de Sebastião, que estava trabalhando aqui como pintor. Digo Sebastião pois foi o nome que ele me apresentou. O sacana, depois de pegar a primeira parcela do pagamento, sumiu. E aqui da casa, que estava ainda vazia, ele levou os materiais de pintura que eu havia comprado, além de ferramentas e uma bomba d’água.

Meu sobrinho que é policial soube dele, pela descrição e modo de proceder, em outra freguesia, lá pelos lados do Saco de São Francisco, em Niterói; mas lá ele dizia chamar-se “Senhor Atílio, fiscal de posturas da prefeitura”. E tem mais: O mesmo elemento parece ter aplicado golpe em alguns políticos, se dizendo jornalista do Jornal O Fluminense e prometendo escrever matérias favoráveis, mediante módico pagamento. Nesta aventura o nome que ele utilizava era Abel alguma coisa. Assim, lamento lhe informar que o tal Sebastião ou Atílio ou Abel ou o diabo que o parta, o mesmo que me sacaneou, infelizmente sacaneou também o senhor, e utilizando a minha casa...

História triste desembalada, era Banzé comer o pedaço que conseguisse digerir e rumar de volta pra central, onde o chapéu de otário, feito de couro nobre da terrinha, além da dívida cabulosa, o aguardavam.

Foram meses trabalhando “de graça”, remoendo poeira e ódio, passando fome como na terrinha da qual se surrupiara.

 

*******

 

– Doutor Gilson!, continuou a gritar Banzé, recuperando um nome de duas décadas atrás. O ouvinte, fosse Gilson ou não, ou não ouviu ou se fez de rogado.

– Senhor Atílio, o fiscal da prefeitura de Niterói, é o senhor??? – berrou mais forte Banzé, mudando a nomenclatura e já abrindo caminho por dentre a pequena turba que sacava pingados e requenguelos para a inteira do enterro.

– Está falando comigo, cidadão?

– Oxi! Pois tô!, ô se tô!!! Não se lembra de mim, “doutor”?

– Não, não me lembro, e nem sou doutor, nem fiscal. Por acaso, meu nome é Hélio, e sou líder comunitário lá no Salgueiro. Conhece o Salgueirão?? – disse o arrecadador de inteira pra enterro, agora com o semblante algo acuado ao ouvir um segundo nome, e tentando já assustar o inoportuno pregoeiro.

– Pois me deixe lhe avivar a memória, Abel. Tenho uma boa notícia pro senhor.

A primeira tapanca estrondou nas fuças do envelhecido engenheiro da Petrobrás, logo seguida de um cortejo doutras bordoadas, curtidas por duas décadas de atraso e sol quente. A sessão de descarrego teve o inusitado de, a cada pancada desferida, o vingador Banzé endereçá-la verbalmente a uma das personas ou almas que habitavam aquela carcaça tinhosa: Um soco de esquerda pegando pela lateral desguarnecida do queixo foi nomeada dum “segura, Abel”, enquanto outro murro, um potente e estranho direito desferido de cima para baixo escorreu magoando a cara dum “toma essa, Hélio”, que cambaleou e foi ungido com um chute acima do umbigo, desta vez encomenda para um certo “Gilson, seu filho-da-#&$@”. O engenheiro ou pintor ou fiscal de posturas ou jornalista ou líder comunitário mal teve tempo de acessar aquela de suas personas que fosse a mais valente, pois o conjunto dos tantos-em-um se esborrachou no chão, sendo amaciado a chutes e pontapés.

– 171, safado, filho duma quenga! Passei muita fome por tua causa, desgraça! – gritava o transtornado nêmesis exorcista, vermelho feito pimenta.

E choviam sopapos nomeados, uma tempestade deles, enquanto convivas se evadiam num desespero tal que até o pobre defunto – sacrilégio! – foi derrubado de seu ataúde, enquanto mulheres e crianças expandiam um berreiro de acordar alma penada, num fuzuê que o campo santo jamais vira.

 

*******

 

Na delegacia, levantou-se a planta daninha do pilantra. Nascido em Goiás, onde iniciara a carreira roubando gado, lá curtira breve cadeia, donde fugira justamente para o leste fluminense. Terra de pretensa malandragem, mas onde ele, cujo nome verdadeiro (?) era Cassiodoro Lopes Caiado, encontrara sempre desprevenida & farta manada de otários. Quem diria que, em terras fluminenses, seria um cearense da mulesta quem iria dar freio naquela carreira artística...


Sammis Reachers

Publicado originalmente no Jornal Daki



Este conto faz parte do livro Fabulário Índigo. Disponível em formato impresso (aqui) e e-book (pela Amazon, aqui).


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