quarta-feira, 16 de maio de 2018

"Sfronch", um conto anarcononsense


Sfronch

O Renault Oroch ou o Troller T4 ficou com um arranhão no para-choque, um traço ínfimo que não carecia de todos aqueles palavrões. Assombroso foi o sinistro som da freada ou freadas ou impacto, um 'sfronch' altissonante e escalafobético, coisa de desenho animado, berro de Pokemon lendário.
– Veja aí então qual é a Lei que incrimina quem desrespeita a faixa preferencial, seu asno! – gritou um dos errados, eu já não sabia de qual dos veículos.
Antes que o outro errado redarguisse do pico de sua pompa e contumácia, o errado acima explodiu de contundente:
- Veja também qual é a Lei que impede as balas quando elas voam na reta da tua cara, meritíssimo – e disparou, matando ali no quente o Juiz de Segundo Grau também dito Desembargador, defunto cheio de méritos e um broche do Rotary, horizontalizados com ele no asfalto um pouco gasto naquele trecho da rodovia.


Mas o assassinato do magistocrata, a despudorada ofensa à Lei e a uma classe sua superior, esses deuses de porcelanato (pois um príncipe não atiraria contr’outro príncipe, carioca ou brâmane) - a busca da Lei-montanha-platônica ao seu ofensor-Maomé-empírico, os secos estampidos da arma monologal, nada disso rememoro. 
É o barulho daquela colisão ou freada ou freadas conurbadas, festin’lésbicas, o estranho ‘sfronch’ o que me assoma ao entendimento - sempre que vejo um carro de polícia ou de bombeiros, ou uma placa qualquer de veículo oficial, da Câmara Municipal, universidade federal ou do Hospital dos Inválidos que seja; até mesmo quando o tédio me surpreende ou repreende na fila de alguma repartição pública. Um som sinistro que sei irreplicável, arroto do caos unívoco na sonata celeste, flatulência como que alienígena.
E mais. Nas duas horas diárias que perco ou duro a chegar do município de Maricá ao centro do Rio de Janeiro, e vice versa, proletário insone esforçado em conciliar o sono, acostumei-me a imaginar ovelhas saltitando, ovelhas de documentário e desenho animado pois nunca vi uma ovelha. Mas, do incidente para cá, já não alcanço contá-las: as ovelhas são agora tenras quimeras, com patas de asno, troncos de ovelha, orelhas miúdas de ariranha, peludas caudas de homem e rostos ainda mais burgueses do que o que eu sonho ter em meus melhores sonhos. E é sempre ‘sfronch’ o som de seus balidos.


Sammis Reachers

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