Capa do livro A Verdadeira Odessa
por Celso Miranda e Giovana Sanchez - http://historia.abril.com.br
Assim que a Segunda Guerra acabou na Europa, em junho de 1945, a derrotada Alemanha foi dividida em quatro zonas, controladas pelos três grandes vencedores – americanos, soviéticos e britânicos – e pelos franceses. Cerca de 1,5 milhão de ex-combatentes alemães voltavam a seu país, vindos de locais como França, Itália e Polônia. Por todo o continente, havia ainda 2,5 milhões de prisioneiros: soldados, oficiais, políticos e colaboradores nazistas, entre os quais estavam responsáveis por um conflito que causou pelo menos 40 milhões de mortes e pelo extermínio de cerca de 6 milhões de judeus, 2 milhões de eslavos e outros 200 mil civis (como ciganos e testemunhas de Jeová).
Quando cessaram os tiros, um objetivo dominou os vencedores: punir os perdedores. “A punição de criminosos de guerra não se trata de vingança”, afirmou o historiador britânico Eric Hobsbawm no livro Era dos Extremos. “Trata-se de trazer de volta a ordem e a normalidade, restabelecendo a confiança dos povos nos organismos legalmente constituídos.” Segundo Hobsbawm, esse processo de “desnazificação da Europa” não pretendia condenar milhares, mas “punir aqueles que servissem de exemplo”.
Logo se percebeu que separar quem era culpado de quem era muito culpado seria um desafio enorme. Cerca de 40 mil funcionários públicos americanos, franceses e britânicos foram convocados: um exército de escrivães, advogados e juízes. Só na zona americana, foram instauradas 545 cortes civis para analisar 900 mil casos.
Menos de seis meses depois da queda de Hitler, os vitoriosos já estavam prontos para acusar e julgar os maiores culpados. Entre 20 de novembro de 1945 e 1º de outubro do ano seguinte, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg decretou 11 condenações à morte, três prisões perpétuas, duas sentenças de 20 anos de prisão, uma de 15 e outra de dez anos. Três acusados foram absolvidos. E pronto. Nos dois anos que se seguiram ao julgamento, 1 milhão de alemães deixaram o país legalmente. Estima-se que outros 100 mil o fizeram de forma ilegal. Entre eles estavam criminosos, carrascos e assassinos. Muitos ficaram impunes para sempre. Quem? Como? Você vai ver a seguir.
FUGA EM MASSA
Já era noite de 26 de junho de 1945 quando uma patrulha do Exército americano avistou um homem andando numa estrada de terra entre Stuttgart e Ulm, no sul da Alemanha. Detido e interrogado, disse ser Adolf Barth, cabo da Força Aérea alemã. Foi preso. Nos meses seguintes, foi transferido de campo seis vezes e, em cada um deles, apresentou-se com um nome diferente. No início de 1946, conseguiu escapar, atravessou o país e se estabeleceu na zona rural de Eversen, onde viveu isolado. Seu verdadeiro nome era Adolf Eichmann. Ex-coronel da tropa de elite SS e chefe da Gestapo (a polícia secreta de Hitler), ele foi um dos mentores da “solução final”, a operação que pretendia exterminar os judeus da Europa.
Em 1950, quando as coisas esfriaram, Eichmann decidiu deixar a Alemanha e foi para a Itália. Lá, em 14 de junho, o consulado argentino em Gênova lhe concedeu visto de imigração em um passaporte com o nome de Ricardo Klement. Comprou uma passagem no navio Giovanna C e, um mês depois, desembarcou em Buenos Aires. Arrumou emprego e levou a família para lá. Seqüestrado por espiões israelenses, foi levado a Telavive, onde foi condenado e executado em 1962.
O senso comum sugere que, antes do fim da guerra, líderes nazistas já tinham planos secretos para salvar a própria pele. Uma dessas rotas de fuga ficaria famosa com o livro O Dossiê Odessa, do britânico Frederick Forsyth. Apesar de ser um romance, baseou-se numa organização real chamada Odessa (sigla em alemão para “Organização de Ex-membros da SS”). Entretanto, pesquisas recentes mostram que esse tipo de iniciativa foi responsável por poucas fugas. “Governos nacionais e instituições completamente legais livraram a cara de muito mais nazistas que organizações secretas”, diz Jorge Camarasa, historiador argentino, autor de Odessa al Sur (“Odessa do Sul”, inédito no Brasil).
A rota que Eichmann usou para deixar a Europa, por exemplo, era coordenada pelo bispo austríaco Alois Hudal, reitor de um seminário para padres alemães e austríacos em Roma. Nazista professo, ele foi nomeado pelo Vaticano para visitar os prisioneiros de guerra detidos na Itália. Segundo Camarasa, Hudal usou sua posição para dar fuga a criminosos nazistas procurados. No início, o bispo conseguia documentos falsos para que os prisioneiros fossem libertados e depois os ajudava a se esconder, geralmente no interior da Itália. Quando autoridades começaram a desconfiar do esquema, Hudal percebeu que precisava tirar seus protegidos da Europa. Recorreu a identificações falsas emitidas pela Comissão de Refugiados do Vaticano. “Esses papéis não serviam como passaportes, mas era com eles que os fugitivos adquiriam nova identidade e, assim, conseguiam auxílio junto à Cruz Vermelha, que, por sua vez, era usada para conseguir vistos”, afirma o jornalista australiano Mark Aarons, co-autor de Unholy Trinity (“Trindade profana”, sem versão em português). “Em teoria, a Cruz Vermelha deveria checar os registros de quem solicitava vistos de saída, mas na prática a palavra de um padre ou, principalmente, de um bispo era suficiente.”
A maior rota de fuga de nazistas, porém, foi criada por uma rede de padres liderada pelo bispo croata Krunoslav Draganovic. “A organização fixou seu quartel-general no Seminário de São Girolamo, em Roma. Inicialmente, seu foco era tirar dos territórios ocupados pelos soviéticos os membros do partido nazista croata”, afirma Uki Goñi, historiador argentino, autor de A Verdadeira Odessa. “Com o tempo, a rota de Draganovic tornou-se a principal via de fuga dos criminosos nazistas, tirando mais de 5 mil deles da Europa.”
AMÉRICA LATINA
Entre os picos nevados de Bariloche, nos Andes argentinos, um imigrante alemão levou uma vida pacata por quase 50 anos. Dono de uma confeitaria chamada Viena, don Erico morava com a mulher, Alice, no segundo e último andar de um prédio na praça Belgrano, alugando o primeiro pavimento para um orfanato. A dois quarteirões dali, um certo Juan Maler ergueu o hotel Campana, onde vivia, escrevendo livros de pregação nazista. Em 1994, a rede de TV americana ABC descobriu que Maler era Reinhard Kops, ex-capitão da SS. Desmascarado diante das câmeras, Kops dedurou: “Por que correm atrás de mim, se o pior dos nazistas da Argentina vive aqui ao lado?” Don Erico, o simpático confeiteiro, era Erich Priebke, ex-capitão da Gestapo e co-autor de um massacre de 330 civis italianos em Roma, em 1944.
Acusar o vizinho deu certo para Kops, que se escondeu no Chile. Ele nunca foi julgado e, dois anos depois, retornou a Bariloche, onde publicou textos hitleristas até sua morte, em 2001. Já Priebke, após uma batalha judicial de 17 meses, foi extraditado para a Itália. Lá, foi condenado por homicídio múltiplo, mas escapou da prisão perpétua – seu crime prescrevera em 1974, 30 anos depois de ser cometido. Ele foi solto, mas a Justiça italiana anulou o julgamento. Hoje, Priebke está em prisão domiciliar em Roma. Não há data para um novo julgamento. Com 94 anos, ele é o prisioneiro mais velho da Europa.
Para o argentino Uki Goñi, interesses econômicos e pressão da Igreja Católica e das comunidades de imigrantes podem explicar por que a América Latina se tornou o destino predileto dos nazistas. “Meu país tem uma peculiaridade, por ter feito um esforço dirigido – ou iniciado – pelo presidente Juan Perón para trazer esses criminosos de guerra”, afirma Goñi. As razões de Perón, segundo ele, incluíam gratidão (os nazistas o ajudaram entre 1943 e 1945) e simpatia pelos ideais fascistas.
O primeiro passo para contrabandear nazistas da Europa para a Argentina, de acordo com Goñi, foi dado em janeiro de 1946, quando Antonio Caggiano, bispo de Rosário, foi a Roma para ser ordenado cardeal. Lá, segundo arquivos diplomáticos argentinos, ele transmitiu ao cardeal francês Eugéne Tisserant a mensagem de que “o governo da República da Argentina está disposto a receber cidadãos franceses, cuja atitude política durante a recente guerra pode tê-los exposto a medidas cruéis e retaliações”. Nos meses seguintes, entre 300 e 500 colaboracionistas franceses foram para a Argentina com passaportes fornecidos pela Cruz Vermelha em Roma.
Outro fator que engrossou o número de nazistas na América Latina foi o uso de criminosos de guerra como informantes e espiões na Guerra Fria (por britânicos e americanos de um lado e soviéticos de outro). Muitos deles foram salvos da prisão e encaminhados ao Cone Sul. Foi o caso de Klaus Barbie, ex-diretor da Gestapo, que ordenou, na França, a execução de civis e o envio de crianças para Auschwitz. Em 1947, ele se tornou agente do serviço secreto americano e, depois, acabou fugindo para a Bolívia. Descoberto em 1971, só foi deportado em 1983. Quatro anos depois, foi condenado na França pela morte de 177 pessoas. Morreu de leucemia em 1991, numa prisão de Lyon.
PORTO SEGURO
No Brasil, a presença de criminosos nazistas também foi grande. O caso mais famoso foi o do médico Josef Mengele, que usava humanos como cobaias de suas experiências macabras em Auschwitz (ele morreu impune, afogado após uma bebedeira em Bertioga, no litoral paulista, em 1979). O envolvimento das autoridades brasileiras na entrada de criminosos de guerra é um assunto polêmico. Mas chovem indícios de que os nazistas contaram com boa vontade para entrar no país. Nos mais de 20 mil documentos dos arquivos da antiga Delegacia de Ordem Política e Social (Deops) liberados pelo governo federal em 1997, há cartas trocadas entre as representações brasileiras em Roma e Berlim que mostram como nossa diplomacia fechou os olhos para o passado nazista de empresários, engenheiros e ex-militares – que eram encorajados a declarar falsos nomes e profissões ao vir para cá.
Especialistas levantam a hipótese de que o próprio presidente Eurico Gaspar Dutra, que assumiu em 1946, sabia do que se passava. Para Marionilde Brephol Magalhães, historiadora da Universidade Federal do Paraná e autora de Pangermanismo e Nazismo – A Trajetória Alemã Rumo ao Brasil, além da simpatia que setores do governo e do meio militar tinham pelos nazistas, Dutra acreditava que técnicos e cientistas alemães poderiam ajudar na industrialização do país.
Um problema ainda maior que a falta de controle na entrada teria sido a falta de disposição para prender e extraditar os criminosos descobertos por aqui. A tolerância do governo brasileiro logo ficou conhecida e intensificou a vinda de nazistas. Alguns nem se deram ao trabalho de mudar de nome, como Franz Stangl. Comandante dos campos de extermínio de Sobibor e Treblinka, na Polônia, ele chegou a ser preso na Áustria em 1945, mas conseguiu escapar para a Síria, onde reuniu-se à esposa e aos filhos. Segundo registros da Deops, desembarcou no Brasil em 1951 e, tempos depois, conseguiu emprego numa fábrica da Volkswagen, em São Paulo.
Stangl só foi preso em 1967, após denúncia do “caçador de nazistas” Simon Wiesenthal (veja quadro na pág. 28). Levado para a então Alemanha Ocidental, foi julgado pela morte de 900 mil pessoas – fato que admitiu à jornalista de origem húngara Gitta Sereny, em depoimento publicado no livro Into the Darkness (“Nas Trevas”, inédito no Brasil). “Minha consciência está limpa. Eu só estava fazendo meu dever”, disse. Condenado à prisão perpétua em outubro de 1970, Stangl morreu de ataque do coração oito meses depois, numa prisão de Dusseldorf.
Outro que ostentou o próprio nome no Brasil foi o austríaco Gustav Wagner, um dos responsáveis pelo campo de extermínio de Sobibor. Enquanto era condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg, o fugitivo Wagner trabalhava como operário em Graz, na Áustria. Ali encontrou o ex-colega Stangl e com ele escapou para a Síria. Chegou a São Paulo com passaporte suíço em 12 de abril de 1950 e foi morar em um sítio em Atibaia, São Paulo, onde fez um chalé no estilo da Bavária. Chamado de “seu Gustavo” pelos vizinhos, foi detido em maio de 1978, ao se apresentar na Deops para desmentir uma reportagem em que era acusado de participar de uma festa em homenagem a Hitler.
Por sua idade avançada, Wagner foi transferido para uma clínica e depois mandado para casa. As autoridades brasileiras já haviam recusado pedidos de extradição feitos por Israel, Áustria e Polônia quando, em 18 de junho de 1979, a rede de TV britânica BBC levou ao ar uma entrevista com Wagner. “Eu não guardo nenhum sentimento daqueles dias (...). À noite, nós nunca discutíamos nosso trabalho, só bebíamos e jogávamos cartas”, disse. Quatro dias depois, seu pedido de extradição para a Alemanha Ocidental também foi negado. Em outubro de 1980, Wagner foi achado morto com uma facada no peito. A polícia concluiu que ele se matou.
A lista não acaba aí. Acusado de participar da morte de 30 mil judeus em Riga, na Letônia, o capitão-aviador Herbert Cukurs fugiu para a França, onde obteve visto para vir ao Brasil em 1946. No Rio de Janeiro, ele trabalhou na Fábrica Brasileira de Aviões. Logo depois montou um negócio, alugando pedalinhos na praia de Icaraí, em Niterói. Em 1948, foi reconhecido. Sua casa foi pichada e seu nome saiu nos jornais, mas ele nunca foi preso. Na década de 1950, mudou-se com a família para Santos e depois para São Paulo.
Em 1960, Cukurs tentou se naturalizar. Foi quando a polícia paulista tomou seu único depoimento, em 6 de junho. No dia 7, os policiais ouviram Frida Schmuskovits, sobrevivente dos campos de extermínio da Letônia. Sobre os massacres de judeus, ela relatou que “a matança era feita por ordem de Herbert Cukurs”. Com a naturalização negada, Cukurs foi para Montevidéu em 1965, ao lado de um amigo que ele conhecera um ano antes e se apresentava como o austríaco Anton Kunzle. Dois dias após chegar ao Uruguai, Cukurs foi encontrado numa mala. Tinha marcas de tiros e a cabeça destruída a marteladas. Num comunicado à imprensa, um grupo autodenominado “Aqueles que Não Esquecem” assumiu o assassinato.
ÚLTIMA CHANCE
Chovia pouco em Viena, na manhã de 16 de dezembro de 2005, quando alguns familiares viram o corpo de Heinrich Gross, morto na véspera, aos 91 anos, ser baixado ao túmulo. Psiquiatra e neurologista de renome, Gross ocupava, desde 1962, uma cadeira na Academia Austríaca de Ciência. Mas é outra parte de sua biografia que nos interessa. Entre 1940 e 1945, o doutor Gross dirigiu o programa nazista de pesquisas de eugenia baseado em Viena. Em sua clínica, ele coordenou experimentos médicos e farmacológicos que vitimaram mais de 700 crianças. Após a guerra, Gross desapareceu. Ressurgiu seis anos depois, em Viena, como professor. Em 1956, foi nomeado perito da Justiça para avaliar criminosos com problemas mentais. Só em 1994 acadêmicos da Universidade de Viena perceberam que o simpático velhinho e o cruel cientista eram a mesma pessoa.
Apesar das tentativas de levar Gross aos tribunais, ele nunca foi preso – houve pouca movimentação por parte de promotores e juízes, com quem tantas vezes ele havia trabalhado. Em 2002, quando foi enfim convocado por uma corte vienense, Gross, aos 89 anos, mostrou-se senil e, segundo seu advogado, não conseguia entender o interrogatório. O médico foi declarado inapto para ser julgado e saiu pela porta da frente do prédio, caminhando com uma bengala. Viveu em paz até morrer.
Gross se enquadra num grupo de nazistas que nunca fugiu, mas desapareceu nos desvãos da burocracia. Há quem aceite o esquecimento. Não é o caso do Centro Simon Wiesenthal (CSW), que desde 1977 reúne informações sobre nazistas. “Genocídio e assassinato em massa nunca prescrevem”, afirma o israelense Efraim Zuroff, diretor do CSW em Jerusalém. Segundo o último relatório da entidade, de 2006, 458 pessoas estão sendo investigadas por crimes de guerra e, de janeiro de 2001 a dezembro de 2006, 41 nazistas foram condenados no mundo. Segundo Zuroff, outros poderiam ir a julgamento se houvesse mais empenho dos países que os abrigam. “O mais difícil não é encontrar os criminosos, mas levá-los a julgamento.”
O nome mais recente entrou na lista da CSW em julho de 2006. Num evento social, um sujeito não parava de se gabar de seu papel na deportação de judeus para Auschwitz. Um jovem anotou seu nome e procurou o CSW. “Descobrimos que era Sandor Kepiro, húngaro condenado pela morte de mais de 1200 civis em janeiro de 1942, na cidade de Novi Sad, então parte da Hungria, atualmente na Sérvia”, conta Zuroff. Aos 93 anos, Kepiro mora em Budapeste e aguarda a Justiça determinar se ele terá de cumprir a pena de 14 anos de prisão que recebeu em 1948.
Entre os nazistas ainda foragidos, o mais eminente é o médico austríaco Aribert Heim, que serviu em três campos de extermínio, Sachsenhausen, Buchenwald e Mauthausen, onde centenas de pessoas foram mortas com injeções de fenol no coração. “Heim foi preso pelos americanos na Bélgica em março de 1945, mas foi solto dois anos depois”, diz Zuroff. Livre, Heim voltou à medicina e, em 1962, foi processado na Alemanha Ocidental. Enquanto aguardava julgamento, fugiu. Desde então, foi visto na Argentina, Egito, Uruguai e Espanha. Era dado como morto até que, três anos atrás, a polícia alemã descobriu uma conta bancária em nome de Heim com mais de 1 milhão de euros. O fato de seus filhos nunca terem sacado o dinheiro levou as autoridades a concluir que ele ainda está vivo. Uma força-tarefa foi montada para encontrá-lo. Seu paradeiro, no entanto, permanece um mistério.
Más companhias
Os americanos usaram ex-nazistas como arma na Guerra Fria
Dois anos antes de Adolf Eichmann ser achado na Argentina, em 1960, os americanos já sabiam seu paradeiro, incluindo o nome que ele usava: Ricardo Klement. Quem afirma isso é Timothy Naftali, da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. O historiador é um dos quatro membros do Grupo de Trabalho sobre Crimes de Guerra Nazistas, encarregado pelo governo americano de examinar arquivos liberados pela CIA desde 2004 – são 27 mil páginas sobre a atuação da central de inteligência no pós-guerra. Segundo Naftali, os Estados Unidos esconderam a identidade de ex-nazistas e os usaram como espiões contra a antiga União Soviética. “A CIA e o governo da antiga Alemanha Ocidental cooperaram para encobrir o paradeiro de Eichmann.” Americanos e alemães achavam que, se descoberto, Eichmann comprometeria Hans Globke, chefe da Casa Civil do então primeiro-ministro da Alemanha, Konrad Adenauer. Como Eichmann, Globke pertencera ao alto escalão nazista – fora um dos criadores das chamadas Leis de Nuremberg (que, entre outras coisas, cassaram direitos civis dos judeus alemães nos anos 30). Os documentos revelados mostram ainda que, depois da execução de Eichmann, em 1962, a CIA pressionou a revista americana Life, que detinha os direitos de publicação das memórias do nazista, para que ela omitisse o nome de Globke da narrativa. O conselheiro acabou deixando o governo alemão em 1963.
A ampla rede de ex-nazistas a serviço dos Estados Unidos era liderada pelo major-general Reinhard Gehlen, ex-chefe da espionagem de Hitler na frente oriental. Em 1956, essa rede se tornou o núcleo da Bundesnachrichtendienst (conhecida, graças a Deus, pela sigla BND), o serviço de espiões da Alemanha Ocidental. Gehlen dirigiu a BND até 1968 e morreu do coração em 1979, em Bonn. Nunca foi acusado de crime algum. “Após o fim dos julgamentos de desnazificação, era política dos Estados Unidos deixar a perseguição aos criminosos para os alemães ocidentais. Mas esses não mostraram nenhum interesse em fazê-lo”, diz Elizabeth Holtzman, ex-deputada americana e também membro do grupo que analisa os documentos. “Os arquivos nos forçaram a enfrentar não somente os prejuízos morais, mas também os prejuízos práticos que tivemos ao confiar serviços de inteligência a ex-nazistas.”
"Justiça, não vingança"
Simon Wiesenthal dedicou sua vida a caçar nazistas
Quando morreu, em setembro de 2005, em Viena, Simon Wiesenthal tinha 96 anos. Boa parte deles fora gasta repetindo a frase acima. Ele a usava para justificar sua incansável perseguição a criminosos nazistas. Judeu, Wiesenthal nasceu no então Império Austro-Húngaro e foi preso em 1941, durante a ocupação nazista da Polônia. Após ter sobrevivido a 12 campos de concentração, foi libertado por tropas americanas no campo austríaco de Mauthausen. Na época, com 1,82 metro, pesava 45 quilos. “A força para sobreviver veio da decisão de cobrar a punição dos responsáveis pelo Holocausto”, costumava dizer ele. Essa tarefa, cumprida por décadas, tornou-o alvo de diversos atentados e ameaças de morte.
Wiesenthal começou com uma lista de 91 nomes de criminosos de que ele próprio tinha conhecimento. Ela foi crescendo com depoimentos e denúncias de sobreviventes de campos de concentração que, logo após a guerra, estavam espalhados por acampamentos na Áustria, Alemanha e Itália. Wiesenthal foi o primeiro a aplicar sistematicamente o método da história oral nas pesquisas sobre o Holocausto, e fundou um centro judaico de documentação. No livro Justiça, Não Vingança, publicado em 1988, Wiesenthal contabilizou ter contribuído para a investigação de 6 mil casos e para a punição de 1100 criminosos nazistas.
De Nuremberg a Bagdá
Como chefes de Estado têm sido julgados por seus atos
Criado em agosto de 2004, o Tribunal de Criminosos de Guerra Iraquianos foi instituído para julgar crimes cometidos desde a tomada do poder pelo partido Baath, em julho de 1968, até a derrubada do regime de Saddam Hussein, em maio de 2003. No fim do ano passado, numa decisão anunciada por Abdel Asis el Hakim, chefe do Conselho de Governo e histórico opositor de Saddam, o ex-presidente do Iraque foi condenado à morte e executado. Países como Brasil, Rússia e França reagiram negativamente à pena capital, com o argumento de que se deveria evitar a “justiça dos vencedores”. Ou seja, temia-se que não houvesse justiça, mas vingança.
O primeiro chefe de Estado a ser julgado por crimes de guerra deveria ter sido Adolf Hitler. Isso se ele não tivesse se matado dias antes do fim da guerra. “Não se pode culpar um país, mas deve-se responsabilizar seus líderes. Aqueles que lideraram o destino de milhões devem responder pelos seus atos”, dizia o documento de abertura do tribunal de Nuremberg, em 1945.
Embora o direito militar tenha contornos definitivos desde a Convenção de Genebra, de 1949, só após o fim da Guerra Fria a Organização das Nações Unidas (ONU) pôde ressuscitar as cortes internacionais para julgar crimes de guerra e contra a humanidade. E o primeiro réu levado a julgamento, em 2002, foi Slobodan Milosevic, ex-presidente da Sérvia e da antiga Iugoslávia, cujas tropas foram acusadas de atrocidades na província de Kosovo e na Bósnia. O Tribunal Internacional estabelecido em Haia, na Holanda, teve juízes de várias nacionalidades – mas nem assim escapou das polêmicas. Milosevic foi levado a Haia sem que a Sérvia aprovasse a extradição, o que feriu o direito internacional. Seu julgamento não chegou ao fim: em 11 de março de 2006, ele apareceu morto em sua cela, vítima de problemas cardíacos. Outro ex-chefe de governo julgado numa corte da ONU – o Tribunal Internacional de Arusha, na Tanzânia – foi o ex-primeiro-ministro de Ruanda, Jean Kambanda, que está preso. Em 1998, ele admitiu a culpa pela morte de milhões de pessoas em seu país, quatro anos antes. Atualmente, em Serra Leoa, um tribunal especial criado em 2002 está julgando o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, acusado de crimes durante a guerra civil naquele país.
Saiba mais
LIVROS
Odessa al Sur, Jorge A. Camarasa, Planeta, 1995
Um retrato preciso de como centenas de nazistas se refugiaram na Argentina após a guerra.
A Verdadeira Odessa, Uki Goñi, Record, 2004
Conta como a Cruz Vermelha e o Vaticano participaram de um esquema para levar criminosos de guerra à Argentina.
DVD
Auschwitz: A Fábrica da Morte do Império Nazista, (volumes 1 e 2), vários diretores, 2007
Produção britânica lançada por História, é um dos mais completos retratos já feitos sobre o campo de concentração.
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