Não houve jamais rei que conseguisse sujeitar esta soberba gente liberta,
nem estrangeira nação que se jactasse de haver pisado seus territórios,
nem terra comarcana que ousasse mover-se contra ela ou levantar-lhe espada.
Essa gente sempre foi livre, indômita, temida, com lei própria e cerviz erguida.
(La Araucana, poema de Alonso de Ercilla y Zúñiga, 1533-1594)
No século 16, os mapuches, também conhecidos como araucanos, habitavam o sul do atual Chile e o centro-sul da atual Argentina. Sua história guerreira contra os invasores europeus começa em 1546. Pedro de Valdívia, que penetrara no Chile facilmente pelo norte, atravessando o deserto de Atacama e fundando o povoado de Santiago (atual capital), no centro do país, achou que a conquista seria um empreendimento tranquilo.
Assim, resolveu expandir seu domínio ao sul. Em 1546, uma expedição partiu, e alcançou o rio Bio-Bio, nas proximidades da atual Concepción. Mal sabia Valdívia que ali começava a Araucanía, território sagrado dos mapuches-araucanos. E estes não demoraram a atacar. E o fizeram de forma tão aguerrida que o surpreso espanhol teve que fugir para Santiago.
Percebendo que suas suposições otimistas estavam erradas, Valdívia passou anos preparando uma nova expedição. Esta partiu ao sul em 1550. Ao chegar ao rio Laja, no entanto, a tropa foi atacada de surpresa pelos mapuches, obrigando-a a escapar mais uma vez.
O espanhol, que apesar de tudo conseguira fazer alguns prisioneiros, mandou que lhes cortassem os narizes e as mãos direitas, libertando-os em seguida para que amedrontassem a tribo. Péssima idéia. Pois ao invés de se acovardarem, os mapuches seguiram em seu encalço e, no rio Andalién, voltaram a atacar. Nova fuga espanhola.
Pouco depois Valdívia fundou um forte em Concepción. Nem bem tinham passado alguns dias, a guarnição foi acossada pelos mapuches. Embora tenham conseguido repelir os guerreiros índios, os espanhóis perderam muitos homens. Apavorado, Valdívia pediu ajuda ao vice-reinado castelhano no Peru.
Enquanto esperavam os reforços, e constatando que os mapuches inesperadamente tinham como que "desaparecido", os espanhóis foram implantando fortes: no rio Imperial, no lago Villarrica, em Valdívia. Tão logo chegaram as tropas mandadas desde Lima, comandadas por Francisco de Villagra, em 1552, fundaram outras fortificações em Tucapel, Purén, Confines (hoje Angol), Arauco e Lebu.
Durante toda a consecução dessas obras militares, os mapuches não se manifestaram, o que provavelmente levou os castelhanos a pensar que a conquista estava definitivamente estabelecida. Não sabiam, no entanto, que os índios não tinham "sumido". Na verdade, reunidos em assembléias no coração da Araucanía, os caciques preparavam a guerra. E que, para realizá-la, contavam com uma "arma" secreta sequer imaginada pelos invasores.
O GAROTO ESPIÃO
A "arma" dos mapuches se chamava Lautaro, um rapaz de apenas 18 ou 19 anos, que acabara de ser escolhido como toqui (líder), comandante dos exércitos indígenas, sob as ordens do grande cacique Caupolicán.
Filho do chefe Curihancu, nascido provavelmente em 1534 na zona entre Carampangue e Tirúa, ainda menino Lautaro passara a viver com os espanhóis, em Concepción, após ter sido capturado. Batizado como Alonso, começou a trabalhar nas cavalariças, ganhando a confiança dos inimigos, inclusive do próprio Pedro de Valdívia.
Há quem afirme que Lautaro era instruído por seu povo, no sentido de aprender os segredos dos castelhanos, através de contatos com Caupolicán, feitos através de mensageiros índios que entravam e saíam do povoado.
O garoto espião cumpriu magistralmente a missão. Foi com ele que o cavalo, um dos maiores elementos da supremacia bélica do conquistador em toda a América, revelou-se finalmente ao índio. Primeiramente, rompia-se o mito de que o cavalo e o espanhol eram um ser único e aterrador, com três metros de altura, duas cabeças, seis patas e dois braços. Em segundo lugar, descobria-se que o cavalo não era um animal feroz. E tampouco invencível. Tinha suas deficiências e pontos fracos.
Lautaro investigou tudo o que pôde e, num certo dia, terminada a missão, escapou. Levando consigo dois cavalos, apresentou-se a Caupolicán.
Nas vésperas do Natal de 1553, à frente de 6 mil guerreiros, o agora toqui Lautaro investiu contra o forte de Tucapel. A guarnição espanhola não conseguiu resistir e fugiu. Lautaro manteve o forte, certo de que os conquistadores tentariam recuperá-lo. Foi precisamente o que fez Valdívia. Mas a tática do jovem índio foi mandar ondas sucessivas de guerreiros que levaram os espanhóis a lutar, sem trégua, em pontos acidentados ou pantanosos, onde o cavalo não tinha eficácia.
Assim, no dia 26 de dezembro, às margens do rio Tucapel, Lautaro captura o próprio Valdívia, cujo cavalo havia atolado num alagadiço. Em seguida, após uma assembléia que considerou falsa uma oferta dos espanhóis de retirarem-se do país, Valdívia é executado.
NO LAÇO
Em Concepción, ao saber da morte de Valdívia, Francisco de Villagra decide vingá-lo. Arma uma expedição, que parte à caça de Lautaro, supondo que ele havia se refugiado no sul. O jovem chefe índio, porém, prevendo a reação espanhola, faz justamente o contrário. Sobe rumo a Concepción, ficando de tocaia na serra de Marigueño.
Os espanhóis se aproximam. É a manhã do dia 24 de fevereiro de 1554. Um cão ladra e denuncia a presença dos mapuches. Começa a batalha. O fogo de seis canhões, usados pela primeira vez no Chile, causa estragos entre os índios, mas não detêm sua ofensiva.
Pelo contrário. Os guerreiros de Lautaro investem com curiosas armas, compostas de uma vara de quatro metros, tendo um cordel atado na extremidade. Com ele, engancham a cabeça dos inimigos e os derrubam dos cavalos. Isso é fatal aos castelhanos, pois as pesadas armaduras os impedem de movimentar-se.
De repente, porém, os índios recuam. E os invasores crêem que, no final das contas, a vitória foi sua. Mas em seguida, a surpresa. Aparece um novo destacamento, com guerreiros descansados e dispostos, usando a mesma matreira arma de corda.
Os castelhanos tentam resistir, contando com a chegada da noite para escapar, quando Lautaro envia um terceiro destacamento novinho em folha. Em pânico, os espanhóis pensam em fugir, recuando pelo caminho principal do vale. Mas Lautaro lhes apronta outra: coloca ali uma multidão de mulheres e crianças, munidos de lanças, que enganam os invasores.
Sentindo-se cercados, os castelhanos sucumbem. Apenas conseguem manter um cerco de proteção a Villagra, que mesmo assim foi laçado e ferido. Num golpe de sorte, porém, logra escapar a Concepción.
Incansável, Lautaro decide ir atrás. No entanto, ao chegar, o vilarejo já tinha sido evacuado. Os ocupantes espanhóis, em pânico, tinham se transladado para Santiago. Concepción — a sede do poder castelhano no Chile — foi incendiada e destruída pelos mapuches.
"VAMOS TOMAR MADRI"
Em 1555, a Real Audiência de Lima determinou que Concepción fosse reconstruída, sob o comando do capitão Alvarado. Ao saber disso, Lautaro a sitiou e atacou novamente, em dezembro daquele ano. Sem êxito, Alvarado tentou romper o cerco. Somente 38 espanhóis conseguiram escapar da nova destruição do povoado.
Naquela altura, os castelhanos já sentiam um enorme pavor das investidas militares dos mapuches. E, principalmente, temiam e respeitavam Lautaro. Com ele estava um povo inteiro. Tinha uma causa a defender, possuía disciplina e inteligência, uma combinação muito eficaz no sucesso de uma guerra.
Assim, não deve ter sido com muita surpresa que os castelhanos souberam, no ano seguinte, 1556, que os mapuches, numa audaciosa ofensiva, estavam marchando contra a própria Santiago. Há quem diga que a disposição dos indígenas era tal, que desejavam cumprir uma façanha totalmente inédita na história da conquista da América: "Vamos tomar Santiago, vencer os espanhóis, atravessar o oceano e tomar Madri".
No comando, claro, estava Lautaro. Mas aí algo aconteceu, talvez uma delação. O governo de Santiago soube do plano de ataque. Uma expedição foi mandada para deter os mapuches. E como os espanhóis não conseguiam vencer Lautaro no campo de batalha, o fizeram através de um ato covarde. Em 29 de abril de 1557, perto do rio Maule, o grande chefe foi assassinado enquanto dormia, atravessado por uma lança.
Depois da morte de Lautaro, assumiu a governança Garcia Hurtado de Mendoza. Imediatamente ordenou que se reconstruísse Concepción. Embora os mapuches já viessem sofrendo os efeitos devastadores de uma epidemia de varíola, que surgira dos contatos com os europeus, Caupolicán atacou o povoado. Mas teve que recuar antes que a cavalaria espanhola chegasse.
Garcia armou, então, o mais poderoso exército que já enfrentara os mapuches. Mas estes o atacaram em Lagunilla, sob o comando de Galvarino — que havia sido escolhido por Caupolicán como substituto de Lautaro. Apesar do esforço, os castelhanos, não conseguiram vencer.
Embora os indígenas não tenham sido derrotados, Garcia conseguiu prender, torturar e matar Galvarino. Em seguida, logrou matar também o grande chefe Caupolicán e outros 30 caciques.
Garcia achou que, desta vez, os mapuches estavam vencidos. Mas não. Os suplícios e as mortes de seus líderes só reforçaram neles a disposição de resistir. A chamada Guerra do Arauco não terminou naquele século 16 e tampouco nos seguintes. Por cerca de 300 anos, os espanhóis nunca puderam se sentir tranquilos na terra araucana. Os huincas (brancos) só conseguiram ocupar o sul do Chile, principalmente as regiões de Temuco e Osorno, em 1881.
ACUSADOS DE TERRORISMO
Mesmo com a ocupação de seu território no século 19, que os mapuches chamam de anexação militar, este povo indígena não cessou sua luta. Continuaram incomodando os patrões e o Estado chileno, sendo os criadores dos primeiros sindicatos de trabalhadores do país. Isso porque, com a "pacificação da Araucanía", milhares de índios foram levados ao norte, onde passaram a trabalhar em indústrias e minas, transformando-se em operários.
Já na década de 1970, os mapuches lideraram, no sul, a reforma agrária iniciada pelo presidente Salvador Allende. E posteriormente, com o golpe militar, lutaram contra Pinochet, sendo barbaramente reprimidos.
Nos últimos tempos, a tribo — cuja população soma 1,6 milhão de pessoas, somente no Chile — voltou a fazer expropriações de terras e ações rebeldes, principalmente contra os latifundiários e empresas transnacionais — o que levou a "democracia" chilena a detê-los sob a acusação de terrorismo.
"O próprio Estado está dando atualidade à lei anti-terrorista gerada na ditadura fascista; e frente a esse terrorismo de Estado não há outra resposta que a mobilização do povo mapuche", disse a professora Elza Pepin, no Encontro da Juventude Mapuche realizado em 2002, em Rouen, França.
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