quarta-feira, 14 de junho de 2023

1999: De como um Dreamcast veio bater em minha porta

 


O ano era lá pelos 1999, 2000. Eu era um jovem de pouco mais de 20 anos, que abandonara há pouco a vivência diária dos fliperamas e trabalhava como cobrador de ônibus. Nos momentos de folga, curtia muito bem meu PS1 com seus mais de 100 jogos, uma bela coleção naqueles tempos alucinados dos CDs a "3 por 10 reais", que eram comuns nos camelôs. Sim, eu era feliz!

Minha vidinha ia tranquila até que num belo dia um certo colega, Rodrigo "Periquito", com quem eu não tinha assim muito contato ou intimidade, mas pertencente a um "clã" de grandes jogadores/aficionados do bairro em que eu morava, me aparece no portão. "Ôôôô Saaammmiiis". Por sorte eu estava em casa, e lá fui atender o rapaz, que era uns três anos mais jovem do que eu. Estranhei, pois ele estava sozinho e não tinha assim tanta amizade comigo, tínhamos mais eram amigos em comum.  

Após os cumprimentos de praxe, ele me relatou sua triste história. O garoto, como disse um dos grandes gamers aficionados do bairro - eu, nessa época desacelerando, já não chegava à altura deles, mais preocupado que estava com trabalho, literatura e namoro - comprara, assim que fora lançado, um Dreamcast, o fabuloso lançamento da Sega que, após o ótimo mas conturbado Saturno, agora sim vinha com tudo sobre a concorrência. Tornara-se, assim, o primeiríssimo do bairro a possuir aquela Ferrari das joganças, fato que fizera crescer sua honra e respeito entre a "nossa" guilda de jogadores. De reles retardatário, Rodrigo fora alçado ao topo do ranking local, ao lado de Diego, o único possuidor - em quilômetros - de um Neo Geo AES. O videogame custara uma grana firme, firmíssima (para você ter uma ideia, corrigindo seu valor da época para números atuais, o console custava mais de R$ 3.000,00). E Periquito ainda fizera questão de adquirir a cereja para encimar aquele bolo, o revolucionário VMU, o memory card com tela LCD e minigames, o que encarecera as prestações. 

Periquito estava no primeiro emprego - na verdade, o trampo era um tipo de biscate, num tempo em que não havia o jovem-aprendiz. Após três meses de compra e uso de sua Lamborghini dos pixels, o rapaz foi repentinamente dispensado do trampo, e se deu então conta de um detalhe: Como se não bastasse gastar quase todo o "salário" para pagar as parcelas daquele console comprado "no susto", no olho-grande ou na emoção, viu logo que não conseguiria pagar as demais prestações, que ainda eram muitas! Vencido pela febre consumista, doença silenciosa e a quem a globalização universalizou, faltou sabedoria ao jovem; sim, sabedoria, “riqueza” que parece fugir da maioria dos homens. O próprio Jesus, milênios atrás, já ilustrava um de seus ensinos com a seguinte reflexão: “Pois qual de vós, querendo edificar uma torre, não se assenta primeiro a fazer as contas dos gastos, para ver se tem com que a acabar? Para que não aconteça que, depois de haver posto os alicerces e não a podendo acabar, todos os que a virem comecem a escarnecer dele, dizendo: Este homem começou a edificar e não pôde acabar” (Lucas 14:28-30). E agora? 

E aqui, nas elucubrações de Periquito, eu entrava na história, afinal era o único do grupelho de jogadores a ter um emprego "de verdade", pois os demais ainda não trabalhavam. Após relatar seu problema, ele me fez uma proposta - Ele queria que eu lhe desse o meu PS1 e minha coleção de jogos, e mais um dinheirinho (que ele usaria para saldar ao menos umas duas prestações das faltantes, para não ficar com o nome sujo no Serasa/SPC), em troca de seu belíssimo Dreamcast e alguns jogos que ele possuía. Dividido entre a preocupação de conseguir jogos para o novo console (temor que logo se mostraria acertado) de um lado, e de outro poder desfrutar daquela maravilha, aquela Maserati das jogatinas, e ainda ajudar o pobre rapaz, pedi para ele então trazer a máquina e instalá-la em meu quarto, para um test drive

Gostei, meninos, confesso que gostei do que vi: as lendas eram verdadeiras! Negócio feito, na mesma noite eu embarquei num universo mágico em que, poucas horas antes, eu sequer sonhara em mergulhar.

Logo de cara, fui sequestrado pela paixão de Sonic Adventure. Eu, um nintendeiro clássico, de repente jogava meu primeiro Sonic, e ficava maravilhado no processo. Outros jogos alucinantes vieram, como Crazy Taxi, Soul Calibur I & II, MSR, Dead or Alive 2, o injustiçado jogo mix de luta com beat 'em up da Capcom, Power Stone. Spawn, jogo violento mas absurdamente viciante, me tomou horas e horas de jogatina, para horror de minha namorada crente (eu, ateu na época, me converteria pouco depois), assustada com toda aquela, hum, "carnificina".

O lado ruim daquele Porsche tunado dos 32 bits era o já relatado: Só após muito tempo, descobri em um bairro próximo um rapaz, um único, que possuía um Dreamcast (e pouquíssimos jogos...). E era com ele que eu trocava CDs. Nada como o PS1, que tinha uns dez, quinze usuários na vizinhança próxima. Até nos camelôs não era fácil conseguir games para a máquina... Quanto aos jogos originais, bem, cada um custava algo como um terço de meu salário já inteiramente comprometido, ou seja: estavam além do meu apertadíssimo orçamento.

O final de minha história com o Dreamcast foi triste, mas faz parte das lides da vida adulta. Dois, três anos se passaram, eu me casara e, precisando instalar com urgência um tanque de roupas em minha casa, e sem ter sequer um "merréu" ($) sobrando, ouvindo diariamente as cobranças da mulher (quem nunca?), tive que vender meu bem precioso, minha charanga dos consoles. Coisas da vida de um adulto pobre! 

Se me arrependo? Uai, e você não se arrependeria?! Dói até hoje... Mas o que importa é que fui feliz por viver aquele momento, viver aquele console, e posso dizer que, dos videogames que tive, o Dreamcast foi certamente o mais charmoso ou especial. Longa vida ao Dream, longa vida ao sonho!


Sammis Reachers


Publicado originalmente na Revista Muito Além dos Videogames #09


 

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