segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Cadillacs and Dinosaurs: Memória & Análise



 O ano era 1993, já na "reta final" da era de ouro dos beat 'em ups, antes do domínio de jogos de luta, iniciado anos antes com Super Street Fighter II, explodir com a franquia The King of Fighters. De repente, jogadores do mundo inteiro surpreenderam-se com um jogo inacreditável de tão bom e tão louco. Golpes, armas, inimigos, cenários - tudo ali era maneiro, mas ainda havia o toque dissonante, desconcertante: Sim, eles, os dinossauros! Velociraptors, triceratops, brontossauros, pterossauros e os reis, os tiranossauros rex alucinavam ainda mais a já de si mesma alucinante jogatina.

O jogo originou-se a partir da obra em quadrinhos Xenozoic Tales, do norte americano Mark Schultz. Na obra, um futuro distópico à la Mad Max nos é apresentado. A intensa exploração dos recursos naturais somada à poluição levou a Terra ao previsível colapso (opa, estamos quase lá!, a não ser que Jesus retorne antes - ou retorne no próprio processo de colapso). O que restou da humanidade precisou abrigar-se em cidades subterrâneas. Mais de quinhentos anos depois, quando resolveram sair da toca, os humanos se depararam com um mundo (re)habitado por dinossauros. No princípio eram até mansos, os bichos. Mas uma gangue de canalhas e maloqueiros, os Black Marketers, passaram a caçar os bichanos, que rapidamente se tornaram hostis, atacando humanos aleatoriamente. Para tentar reequilibrar o novo ecossistema, quatro paladinos, Jack Tenrec, Hannah Dundee, Mustapha Cairo e Mess O'Bradovich se unem para dar um basta à carreira de crimes dos Marketers.

O que sobreviveu da antiga tecnologia humana foram frangalhos, e é com eles que é preciso reconstruir a vida. Jack é um mecânico à la Professor Pardal e, já que a tecnologia para refinar petróleo foi perdida, ele construiu um motor diferenciado para alimentar seu possante Cadillac. Um motor movido à guano. Mano, guano é bosta de dino! Na verdade, guano são as fezes de pássaros - e até morcegos - quando se acumulam, e que é largamente usado como adubo. O segredo do combustível de Jack é cobiçado por seus inimigos, que fazem fila para amaciar o couro do bruto. O cara une socos e sustentabilidade, uma mistura promissora! É o personagem mais balanceado, embora o alcance de seus golpes seja curto demais. A bela Hannah é diplomata e exploradora; a mais leve e fraca, mas algumas armas fazem maravilhas em suas mãos. O melhor personagem, Mustapha, é amigo e espécie de braço direito de Jack. Na preferência dos jogadores, está para Cadillacs assim como Ken e Ryu estavam para SSFII. O meu preferido, Mass, é o fortão do jogo, de golpes contundentes, embora lento. Seu passado é uma incógnita...

O autor Mark Schultz publicou a primeira HQ em 1986, e pelejou bastante para ver seu sonho realizado. Antes do sucesso, enquanto publicava histórias esporádicas aqui e ali, ganhava a vida como simples vigia noturno. Não se espante: Muitos outros autores de obras autorais de renome vieram de trabalhos humildes que lhes sustentavam, enquanto tentavam a sorte grande. É o caso dos criadores das Tartarugas Ninja, que eram funcionários de uma pizzaria. Ou do chileno Roberto Bolaños, que também foi vigia noturno (e lixeiro, faxineiro, estivador), e que durante os turnos escrevia textos que o sagraram como o maior escritor latino-americano recente.

Mas voltemos ao jogo. Cadillacs acerta na profusão das armas, todas com tamanho maior do que o natural em relação ao corpo humano; sim, característica agradável e funcional num beat. A contagem das munições restantes na tela, a possibilidade de recarregar as armas de fogo, de usá-las como porrete ou objeto de arremesso quando descarregadas - tudo isso enriquece a jogatina. Como já dito, a qualidade gráfica e sonora foram igualmente extraordinárias para a época.

Cadillacs possui uma característica salutar: ORDEM. Sim, durante todo o jogo, CADA galão ou barril que está ou cai na tela possuirá O MESMO ITEM. Entende a importância disto? Isso premia o bom jogador, o fiel. Eu, por exemplo, sabia o local ou posição de cada repositor de life ou vida (aqui chamamos de "sangue"; assim, uma pizza é "sangue", uma rosquinha é "sangue"; "olhe ali amigo, pegue aquele sangue"). Saber onde se encontrava cada sangue me ajudava na proeza de zerar o jogo com uma única ficha, mesmo com os personagens mais fracos ou deficitários. Por sinal, acredito que Cadillacs foi o único jogo de arcades da vida onde eu era o melhor jogador no meu e nos bairros adjacentes, pois mais ninguém - numa pequena mas povoada nação de jogadores - conseguia zerar com uma só ficha usando o Jack ou a Hannah.

A fusão dos inimigos humanos e mutantes, fiel aos quadrinhos, remete o jogador de beat 'em ups à Mutation Nation (SNK, 1992) e Violent Storm (Konami, 1993). Mas Cadillacs vai muito além, e é como um coroamento da longa carreira de beat 'em ups da Capcom. Confesse, se você é fã do gênero: O game não deixa aquela sensação de beat 'em up completo? Sua profusão de golpes, apuro gráfico, efeitos sonoros pensados para um briga de rua, dificuldade equilibrada, possibilidade de até três jogadores simultâneos e o fator dino, cuja presença neutra pode ser atiçada por inimigos ou pelo jogador, lançando um divertidíssimo toque de caos na dinâmica do jogo, com os dinos atacando aleatoriamente a mocinhos e bandidos - tudo enfim colabora para tornar o jogo uma obra prima.

Os quadrinhos deram origem a uma curta série de animação (13 episódios) exibida pela CBS em 1993 (corre no Youtube). E o jogo deu origem a uma continuação, o horripilante Cadillacs and Dinosaurs: The Second Cataclysm (corrida/aventura; Sega CD e PC), do qual é melhor esquecer, de tão ruim. 

Alguns se perguntam o porquê de não haver ports do jogo para os consoles da época. É simples: A Ford cobrava uma grana tão forte para licenciar a marca "Cadillac", que a Capcom achou melhor ficar apenas com o jogo de arcade. E assim, os exageros do monstro capital - o capitalismo, mal necessário, é o último dinossauro vivo? - mais uma vez privaram nossas vidas de muita diversão...

Sou um grande fã de Final Fight, a dura escola dos beat'emupmaníacos dos anos 80; igualmente do charme de Captain Commando, provavelmente o beat que mais joguei nos fliperamas. Mas, se há um beat 'em up central, que congrega as maiores riquezas do gênero num único game, certamente é Cadillacs, o melhor beat 'em up da era de ouro do gênero.

Sammis Reachers



Texto originalmente publicado na revista Muito Além dos Videogames #10. Disponível AQUI.



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