A Ordem Luterana da Cruz Combatente
Jorge F. Isah
O que monstros, anjos, demônios e uma conspiração secreta têm a ver com o Cristianismo? Simbioses, mutações, o bem e o mal disputando almas e o domínio do mundo? Para muitos, nada. Mas para aqueles que veem e estão dispostos a ver, tudo. Assim, de maneira simplista, podemos definir o primeiro romance de Sammis Reachers, “A Ordem Luterana da Cruz Combatente”, em seu tomo I: uma fábula repleta de magia, ação e surpresa. Mas seria toda a verdade?
Conheço a obra de Sammis há mais de dez anos. Autor criativo e eclético, transita por vários gêneros literários. A sua produção explora com a mesma facilidade estilos que vão dos poemas, contos, ensaios, coletâneas e, agora, o romance. Como a maioria dos poetas, se considera um prosista de versos, porque a poesia nunca está distante, nunca é relegada ao segundo plano, ou deixa de ser a mola mestra da criação. Por mais que o gênero se distancie dessa linguagem, o poeta jamais dormita ou abandona-a.
Permeada pela cosmovisão cristã, não espere temas proselitistas, dogmáticos ou definições teológicas. Não. Ele está disposto a mostrar a vida, a realidade, com seus becos-sem-saída, caminhos sem volta, naufrágios em terra e mar, mas também a possibilidade de sublimação e redenção. Enfim, ser guiado de volta para casa... A despeito dos percalços, ataques, aflições, as tentativas de obstruir e impedir a jornada, a ovelha ou peregrino estará segura em Cristo, ainda que ouça o rugido dos lobos, o esgueirar das serpentes, o tilintar de ouro e prata ou o estampido de trabucos. Como o monge diz a Martinho: “A ordem por tantas e tantas vezes dorme. O caos, nunca” (pg. 14). O mundo é o palco onde a arte desvela a saga humana, mas também os bastidores e arranjos, antes, durante e depois da representação em que cada um de nós tem papel crucial no cenário tripartite da “guerra cósmica”.
“A Ordem Luterana...” não obstante ter todos os elementos épicos, de remeter às grandes obras de aventura, capa, espada, e os mais eletrizantes thrillers de ação e combate, tem camadas as quais o leitor deve atentar. Não se trata de outra epopeia, onde bons e maus se assanham, ou o jirau das peripécias de bravos e covardes, nobres e canalhas, numa dicotomia reducionista. Por natureza, o homem é ambíguo, e suas dúvidas, tal qual as decisões, nem sempre encontram as explicações lógicas e racionais. Afinal, e não se turve a reconhecer, sentimentos e emoções gravitam e atraem as mais inesperadas e repentinas decisões, e denunciam não haver somente o físico, mas também o transcendente.
De um lado, a “Ordem”, seus homens e anjos, do outro, o “Deicídio” (cujo objetivo, como o próprio nome indica, é a morte de Deus e seus filhos), constituído por homens e demônios. Entre eles, a humanidade em sua placidez ignota, capaz de acreditar somente naquilo que os olhos veem, ou não veem. Entretanto, existe um mundo, ou mundos, alheios aos olhos físicos e disponíveis exclusivamente aos olhos espirituais. E neste campo se desenrola a guerra iniciada no Éden, em que Adão se fez presa fácil para as artimanhas do diabo, vítima da sua soberba e inveja.
Os cambiantes, mistura de humanos e seres angélicos, são a elite dos agentes de ambas as forças. E a maior parte dos embates se dá com eles. Por falar nisso, o terço final do livro é de tirar o fôlego, literalmente. Para quem gosta de ação, reviravoltas e emoções, é um prato cheio; sem esquecer as várias esferas subentendidas às quais o autor propositalmente ofertou ao leitor, não como um “plus” ou complemento, mas a essência, algo imprescindível... Ponderando mais sobre as entrelinhas, das camadas criadas pelo autor, e elas são tantas e tão distinguíveis que supor ou apegar-se à ideia do livro ser apenas “distração” não somente é simplista, equivocada, mas ilegítima; facilmente pode-se notar a sua condição ou posição (sim, caro leitor, estou a falar de si), à medida que a narrativa se desenrola. Pode-se vislumbrar o movimento no tabuleiro, qual a ameaça e o quanto se está ou não seguro.
A história vai muito além das homenagens a Dumas, Stevenson, Scott, Tolkien ou Lewis, para ficar apenas em alguns. Ela trata da luta instalada no íntimo, onde o sopro divino, ou imago dei, colide com os efeitos noéticos da Queda. E este contexto é muito maior do que as explosões, perseguições, duelos, estratégias, complôs e tantos outros elementos a permear o gênero. Por mais que você resista, o livro fala e trata de você. E, por isso, é tão necessária a leitura de “A Ordem...”, pois, ao sentir-se preso, angustiado, certamente também se sentirá liberto e protegido.
Sammis conhece muito bem isso, porque viveu, e ainda vive, nessa “corda bamba”, mas na convicção de transpor seguramente o fio tênue, mas irrompível, a encerrar o fim da sua fé. Ele fala de si e, por isso, fala de mim, de você, com propriedade. Mesmo não havendo dois seres humanos iguais, existe uma essência que compartilhamos e que nos tornam membros de uma mesma ordem ou caos. E nas peculiaridades encontramos o universal, sem os malabarismos burlescos e artificiais dos antropófobos e fatuados.
Mostra que é possível divertir e pensar, sem abrir mão da verdade, mesmo envolta em sombras e muita, muita fumaça e poeira.
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Título: A Ordem Luterana da Cruz Combatente
Autor: Sammis Reachers
Páginas: 321
Link do autor: httpd://linktr.ee/sreachers
Email: sreachers@gmail.com
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Resenha publicada originalmente na Revista Bulunga n.36
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